O Encobrimento das Menções às Castas no Bhagavad Gītā

por Octavio da Cunha Botelho

A Problemática da Tradução dos Textos Antigos

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Capa de uma edição do Bhagavad Gita em Sânscrito. As traduções para as línguas contemporâneas divergem consideravelmente.

            Em vista do tão pequeno número de leitores que conhecem as línguas antigas, muitos pensam que traduzir um texto antigo é tão fácil e simples quanto traduzir de uma língua moderna para outra língua moderna, tal como se traduzir do inglês para o espanhol ou para o português. Uma vez que as traduções de língua moderna para outra não representam problemas, pois são muitos os tradutores que dominam esta tarefa com habilidade, visto que alguns tradutores são até graduados e/ou especializados em traduções, os leitores em geral pensam que o mesmo acontece com as traduções dos textos antigos, daí não se preocupam em comparar traduções, com isso se prendem apenas àquela que primeiro lhe chegou às mãos. Esta ocorrência é muito comum entre os religiosos, cuja preocupação em comparar as diferentes traduções dos seus livros sagrados não acontece, apegando-se tão somente à versão que o seu líder aconselha.

            Entretanto, a realidade das traduções de obras antigas é muito diferente daquela dos livros contemporâneos. Aqueles poucos que tiveram a curiosidade de comparar as traduções de uma mesma obra antiga são surpreendidos com as divergências encontradas nas distintas versões. O intrigante é que, mesmo assim, estas divergências não são preocupações suficientes, para estes estudiosos, de modo que eles as desconsideram como problemas graves, com isso o fato é desconhecido pela grande maioria dos leitores.

            Por outro lado, os recentes recursos da internet proporcionaram ferramentas para o ágil e rápido trabalho de comparação entre as traduções. Por exemplo, o site BibleGateway disponibiliza cerca de 200 traduções diferentes da Bíblia, em 64 línguas. As com mais versões são aquelas em inglês com 58 versões diferentes e em espanhol com 19 versões, de modo que é possível compará-las online. A partir daí é curioso perceber o tanto que uma tradução diverge da outra, tarefa que antes era mais difícil em razão da inexistência destes recursos eletrônicos.

            Quanto aos livros sagrados dos hindus, a situação não é diferente. Em meu artigo A Problemática da Tradução dos Upanixades,[1] foram reunidas as traduções de 14 diferentes tradutores do primeiro verso do Īshāvāsya Upanishad,[2] p.71-2, a fim de mostrar ao leitor como as traduções de um mesmo verso podem ser diferentes quando consultamos distintos tradutores (Botelho, 2006: 71-2).[3]

Causas nas Divergências das Traduções

            Sem os leitores saberem, muitas vezes as diferenças nas traduções não ocorrem pelo fato de um tradutor traduzir uma mesma obra de maneira diferente de outro tradutor. As divergências, às vezes, não estão na própria tradução, mas sim em algo independente da tradução, ou seja, os tradutores utilizaram edições, recensões, manuscritos, versões ou revisões diferentes de uma mesma obra. Uma mesma obra com distintos manuscritos e diferentes recensões era muito comum na Antiguidade e na Idade Média. Estas diferenças foram as principais causas para a consolidação das seitas religiosas no passado.

            Por exemplo, a Bíblia já passou por inúmeras revisões até hoje, por isso os seguintes nomes para estas edições: Modern English Version (MEV), New International Version (NIV), English Standard Version (ESV), Revised Standard Version (RSV), New Revised Standard Version (NRSV), etc., para exemplificar apenas algumas na língua inglesa. Só em inglês existem mais de 50 versões.

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A tradução de textos antigos sempre foi um problema que muitos desconhecem.

     Na Antiguidade védica da Índia, as diferentes recensões dos textos védicos levaram a formação de diversas seitas védicas (shākhās). Então, no Mahābhāshya de Patānjali são mencionadas a existência de 1.131 shākhās (seitas védicas) no passado, sendo 21 do Rig Veda, 101 do Yajur Veda, 1.000 do Sāma Veda e 9 do Atharva Veda. Enquanto o Muktika Upanishad menciona 1.180 seitas (shākhās), sendo 21 do Rig Veda, 109 do Yajur Veda, 1.000 do Sāma Veda e 50 do Atharva Veda. Porém, destas seitas (shākhās), apenas 11 Samhitās (coleções de hinos) sobreviveram até os dias de hoje: 01 do Rig Veda (Shakala), 05 do Yajur Veda (04 do Yajur Veda Negro: Kathaka, Kapisthala, Mantrāyaniya e Taittiriya e 01 do Yajur Veda Branco: Vājasaneyi), 03 do Sāma Veda (Ranayaniya, Kauthuma e Jaiminiya) e 02 do Atharva Veda (Shaunaka e Paippalada).

            Quando as diferenças acontecem na tradução propriamente, as causas podem ser a imperícia do tradutor ou a intenção do tradutor de imprimir na tradução a sua interpretação ideológica. Esta última é muito comum nas traduções religiosas, quando o tradutor infiltra na tradução a sua interpretação sectária. Então, para o leitor que desconhece a língua original do texto, resta apenas confiar na tradução diante dos seus olhos. Por isso existem as traduções acadêmicas de textos religiosos, que são imparciais e tentam resgatar o sentido original da obra, independente de sectarismo, ou seja, o sentido que o autor pretendeu colocar em sua obra no momento da composição, independente daquilo que os intérpretes posteriores pretenderam que as gerações seguintes acreditassem ser o significado original da obra. Em outras palavras, tradução carregada de pregação e de doutrinação.

As Recensões do Bhagavad Gītā

            O Bhagavad Gītā (भगवद्गीता), isto é: Canto (गीता-Gītā) do Senhor (भागवन्-Bhāgavan), é o texto mais popular do Hinduísmo e, por conseguinte, o livro hindu mais conhecido internacionalmente, portanto o mais traduzido para as línguas ocidentais. Sua popularidade mundial se deveu em grande parte aos esforços propagandistas do Movimento Hare Krshna. Pois, durante os anos 1970 e 1980, era possível encontrar monges deste movimento por todos os cantos do mundo, distribuindo este livro em troca de doação em dinheiro. Já foi traduzido para 75 línguas pelo mundo afora, só em inglês existem mais de 300 traduções (Davis: 2015: 08). Originalmente, ele é um trecho do livro VI (Bishma Parva), capítulos 25-42, do Mahābhārata, o Grande Épico da Índia, que expõe um diálogo entre o deus Krshna e o discípulo Arjuna, logo antes do início da Grande Batalha entre os exércitos dos Pāndavas e dos Kauravas.

            O que não falta para o Bhagavad Gītā é elogios, quer provenientes dos hindus ou dos admiradores estrangeiros. “Shankara (788-820 e.c.) acreditava que este diálogo reafirma os ensinamentos essenciais dos eternos Vedas. Mahātma Gandhi disse que o campo de batalha de Kurukshetra[4] está localizado na alma de todos os seres humanos, onde o eterno conflito entre o bem e o mal acontece. O escritor e ensaísta britânico Aldous Huxley considerava os ensinamentos de Krshna no Bhagavad Gītā como a mais sistemática afirmação relativa às escrituras de uma ‘filosofia perene’, comum a todas as religiões do mundo” (Davis, 2015: 04). Ele é reconhecido por muitos hindus como uma das cinco joias (pancharatnāni) da literatura sânscrita. Já, a denominação de “a Bíblia Hindu”, atribuída por alguns autores ocidentais, é imprecisa, uma vez que, apesar da popularidade, é preciso reconhecer primeiro que o Hinduísmo é formado por incontáveis correntes heterogêneas, cuja autoridade do Gītā não é a mesma, portanto diferente do Cristianismo, onde a autoridade da Bíblia é consensual e uniforme. Ou seja, enquanto em algumas seitas a autoridade do Gītā é suprema, exemplos: as seitas vishunístas, já em algumas denominações shivaístas, a sua autoridade é reconhecida, mas sua importância é secundária.

            O Gītā, tal como ele é abreviadamente denominado, é conhecido através de três ou quatro recensões. A primeira é a recensão comentada por Adi Shankarāchārya (788-820 e.c.), a qual, com o tempo, tornou-se a recensão comumente aceita (textus receptus). Seu texto abriga dezoito capítulos em 700 shlokas (ou 701).[5] Este é o texto que quase todos conhecem. A outra é a recensão da Caxemira, também com 18 capítulos, mas com 716 versos, conhecida mais publicamente através da divulgação por F. Otto Schrader em 1930 (Belvalkar, 1941: 18s; Edgerton, 1996: xiii; Sharma, 1983; Sankaranarayanan, 1985 e Bagchee, 2016). Uma terceira poderá ser considerada uma recensão se aceitarmos a versão dos seguidores de Yādavaprakāsha (um mestre vedantino do século XI e.c.), também com 18 capítulos, porém com nove (ou dez) versos adicionais, comentada na obra Tātparyachandrikā de autoria de Vedānta Deshika (Sampatkumaran, 1985: 520-2). E por último, a recensão da Suddha Dharma Mandalam, com 26 capítulos em 745 versos, tradução inglesa publicada em 1939 (Row, 1939; analisada por Bagchee, 2016). As três primeiras se aproximam muito na ordem e na disposição dos capítulos e dos versos, enquanto que a versão da SDM difere quase que totalmente, sobretudo no número de capítulos (26) e no de versos (745).[6] Por outro lado, a redação dos versos comuns é quase idêntica nas quatro recensões. Digo quase idêntica, pois, na realidade, existem pequenas variantes nas redações de alguns versos do Gītā, quando confrontamos diferentes manuscritos e distintas edições. M. R. Sampatkumaran relacionou 67 variantes (1985: 320-3), enquanto que B. Bhagavan Das listou 25 variantes e as comentou (1979: 331-6), também F. Otto Schrader apontou 282 variantes redacionais entre o Gītā da Caxemira e o texto aceito (textus receptus) do Gītā (Bagchee, 2016, para aprofundamento, ver: Belvalkar, 1941: 18s). Nas avaliações de Joydeep Bagchee e Vishwa Adluri, ambas as recensões, Caxemira e SDM, são falsificações recentes. Sobre a recensão da SDM (Hamsayogin), eles declararam: “O Gītā de Hamsayogin (SDM) não é lido hoje e é amplamente considerado ser uma fraude”, eles também chamaram o Gītā da SDM de “Gītā Teosófico” em razão da tão elaborada sustentação metafísica da divisão dos capítulos e do meticuloso ordenamento dos versos (Bagchee, 2016).

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O Movimento Hare Krshna tornou o Bhagavad Gita internacionalmente conhecido.

            Com pouco acolhimento de outros autores, Phulgenta Sinha propôs que o Gītā original possuía apenas 84 shlokas (versos), ao invés de 700 (ou 701). Para ele, o texto original começava no capítulo I verso 28 e terminava no final do capítulo III, isto é, III.43, sendo assim 616 (ou 617) versos são interpolações. Porém, a rigor, do I.28 ao III.43 existem 133 versos, então P. Sinha ainda descartou mais 49 versos neste trecho inicial (Sinha, 1987: 153s). Portanto, enquanto que a desconfiança maior é a de que, com o tempo, o texto do Gītā foi crescendo em extensão com as sucessivas interpolações de autores anônimos, as recensões da Caxemira, da SDM e de Yādavaprakāsha propõem textos mais longos, o que as colocam na contramão da busca pelo Gītā original mais curto, livre dos acréscimos posteriores. Uma alegação daqueles que defendem o processo de acréscimos é a de que o Gītā era inicialmente um tratado de Samkhya-Yoga não sectário, que mais tarde foi, gradativamente, interpolado com ideias do sistema Vedānta, a fim de transformá-lo em um texto vedantino, de maneira que, os primeiros capítulos que tratam do Samkhya-Yoga representam os trechos originais, enquanto os trechos seguintes, carregados de ideias vedantinas, são interpolações tardias (para mais sugestões sobre a origem do Gītā, ver: Radhakrishnan, 1949: 14-5 e Sinha, 1987: passim).

Porém, atualmente esta interpretação não é reconhecida pelos principais estudiosos do Gītā, embora ainda seja uma hipótese a se pensar. A dificuldade acontece em virtude da ausência de manuscritos, de registros e de documentos sobre o Gītā que antecedem ao comentário de Shankara. Os proponentes da hipótese da maior extensão se apoiam em curtas menções no Mahābhārata sobre diferentes números de capítulos e de versos do Gītā. As duas recensões publicadas no século passado (da Caxemira e da SDM), anunciadas como mais antigas que a recensão de Shankara (textus receptus) não solucionaram o problema, uma vez que ambas apresentam claros sinais da tentativa de corrigir defeitos textuais (sobretudo SDM) e redacionais (sobretudo Caxemira) da recensão corrente, pelo fato do texto do Gītā ter recebido acréscimos de várias mãos em épocas distintas, por isso a evidência de serem falsificações recentes (para aprofundamento, ver: Bagchee, 2016: passim).

            A atribuição da autoria a K. D. Vyāsa é pura mitologia. A data de sua composição, a maneira como foi composto e a autoria ainda são motivos de discussão entre os pesquisadores e os historiadores. Quanto à época da composição, Richard H. Davis observou: “a maioria dos pesquisadores concorda que o Bhagavad Gītā foi composto no norte da Índia, em algum momento no período clássico entre o reino do rei Ashoka (reinou: 269-232 a.e.c.) e a dinastia Gupta, 320-547 e.c.” (Davis, 2015: 06), sobretudo em razão da sua estilística sânscrita (Sargeant, 2009: 03s), como parte de uma composição maior, o poema épico Mahābhārata. Outros pesquisadores sugerem, talvez mais acertadamente, que a composição do Gītā é o resultado de um longo processo de acréscimos por autores anônimos, com a intenção de transformá-lo em um compêndio que reunisse temas de diferentes correntes do Hinduísmo, cujas interpolações deixaram de ser acrescidas a partir do comentário de Sri Shankarāchārya (788-820 e.c.), para então esta versão comentada se tornar o texto aceito (textus receptus) da quase totalidade da comunidade hindu. Um dos mais claros exemplos de interpolações no Gītā é a presença de um considerável número de versos e frases dos Upanixades, literalmente reproduzidos. Exemplo: Gītā III.42 e Katha Upanishad III.10 (Botelho, 2015a: 78-9 e 145-6). Uma forte suspeita da ocorrência de acréscimos no texto é o fato de o diálogo ter ocorrido logo antes do início de uma batalha, quando os soldados estavam em formação, prontos para o combate e ansiosos para lutar, de maneira que não haveria paciência para aguardar um longo diálogo de 700 shlokas (ou 701 versos em duas linhas). Muito provavelmente, a primeira composição deveria ter sido um texto bem mais curto.

O Sistema Hindu de Castas

            Muitos povos do passado tiveram suas sociedades divididas e reguladas pelo sistema de castas,[7] porém nenhuma alcançou a sofisticação, o detalhamento, a rigidez na regulamentação e a longa duração como a sistema hindu de castas.

A vida do hindu é regulada pelo Varnāshramadharma (वर्णाश्रमधर्म), ou seja, a Lei (Dharma) que regula as Quatro Etapas da Vida (Āshramas), bem como a divisão e a conduta das castas (Varnas). Deste modo, a disciplina do hindu pode ser dividida em dois âmbitos: o âmbito pessoal (ou familiar) e o âmbito social (ou ocupacional).

O primeiro âmbito, o pessoal, é o Āshrama Dharma, no qual é prescrita a vida do discípulo hindu através de quatro etapas de sua vida. A primeira etapa e a de Brahmachārī ब्र्ह्मचारी (Estudante Celibatário), quando o jovem hindu vive como estudante celibatário sob a orientação de um guru. A segunda etapa é a do Grhastha गृहस्थ (Pai e Família), depois de cumprida a etapa de estudante celibatário, o hindu se casa, forma uma família, cria os filhos e trabalha para o sustento da família. A terceira etapa é a do Vānaprastha वानप्र्स्थ (Residente na Floresta), quando o hindu, após criar os filhos, se desapega da família para residir na floresta (vāna) e se dedicar aos ritos religiosos e à prática da meditação. A quarta e última etapa é a do Sannyāsī सन्न्यासी (Asceta), quando o discípulo renuncia totalmente à vida mundana a fim de se dedicar exclusivamente às práticas religiosas. O Manusmriti define assim: “O Estudante (Brahmachārī), o Pai de Família (Grhastha), o Eremita (Vānaprastha) e o Asceta (Sannyāsī), estes são as Estágios da Vida (Āshramas)” (VI.87 – Bühler, 1993: 214; Jha, 1920-39: vol. 05, 260 e Board of Trustes, 1904: 221-2).[8]

O segundo âmbito, o social e ocupacional, é o das castas (वर्ण-varnas), classificadas de uma maneira hierárquica, com a casta dos sacerdotes (ब्राह्मणाः-brāhmanāh) no top da hierarquia social. Seus ocupantes são: sacerdotes, professores, intelectuais e pensadores. Em seguida, na ordem hierárquica, aparecem os क्षत्त्रियाः (Kshattriyas), esta é a casta dos militares, dos reis, dos nobres, dos administradores e dos governantes. A terceira casta é a dos वैश्याः (Vaishyas), a casta dos agricultores e dos comerciantes, e por último, na base da pirâmide hierárquica, a casta dos शुद्राः (shūdras), a casta dos trabalhadores braçais e dos servos. Os membros das três primeiras castas (superiores) têm o direito à iniciação Upanāyana (उपनायन), a cerimônia de investidura do fio sagrado[9]. Esta iniciação é um segundo nascimento para o hindu, que passa a ser chamado de Dwijah (द्विजः), que significa, duas vezes nascido. O shūdra não tem o direto a esta iniciação, por isso não pode usar o fio sagrado, consequentemente, não é um ‘duas vezes nascido’. Um dos Códigos de Leis explica: “Existem quatro classes (castas): brâmane, kshattriya, vaishya e shūdra. Entre estas, cada classe precedente é superior por nascimento à cada classe subsequente” (Āpastamba Dharmasūtra, I. 01.04 e 05 – Olivelle, 1999: 07).

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Gravura reproduzindo as quatro castas hindus com Govinda (Sri Krshna) ao centro.

Abaixo dos shūdras, na sociedade hindu, existem os ‘sem castas’, também conhecidos por ‘intocáveis’ (párias), em função do alto grau de impureza, por isso não podem tocar ou serem tocados pelos membros de uma das castas. O Manusmrti define assim: “As castas (varnas) brâmane, kshattriya e vaishya são as castas dos Duas Vezes Nascidos (dwijāh), mas a quarta (casta), o shūdra, tem apenas um nascimento; não existe uma quinta casta” (X.04 – Bühler, 1993: 402 e Jha, 1920-39: vol. VII, 249). A excessiva preocupação dos hindus com a pureza é algo paranoico e, ao mesmo tempo, paradoxal, uma vez que os seus templos são imundos, bem como o seu rio mais sagrado, o Ganges, também é uma imundice (ver: Botelho, 2015b: 67-79).

A mais antiga menção das quatro castas aparece no Purusha Sūkta (पुरुषसूक्त-Hino ao Homem Universal) reproduzido no Rg Veda X.90.11-2, no Yajurveda Branco (Vājasaneyi Samhitā) XXX.10-1 e no Atharva Veda XIX.06.05-6:

“Quando eles sacrificaram o Purusha, em quantas partes eles o dividiram? Como eles denominaram a sua boca, os seus braços, as suas coxas e os seus pés”? (Rg Veda, X.90.11).

“Sua boca tornou-se o brâmane, seus braços tornaram-se o Rajanya (Kshattriya), suas coxas tornaram-se o Vaishya, o Shūdra nasceu de seus pés” (Rg Veda, X.90.12).[10]

Note que as castas superiores surgiram das partes de cima do corpo, enquanto que as castas inferiores surgiram das partes de baixo.

O termo sânscrito para casta é varna (वर्ण), o qual significa “cor”. A razão para este significado pode ser encontrada nos mais antigos textos hindus. Os Vedas contrapõem os invasores arianos (आर्याः) de pele clara, dos seus inimigos (Dāsas e Dasyus) de pele negra (त्वचमसिक्नीं-twachamasiknīm).[11] O Rg Veda IX.73.05 menciona “aqueles de pele escura (twachamasiknīm) odiados por Indra” (Wilson, 1990: vol. 05, 526). Em outra passagem (IX.41.01), deste mesmo texto, os de pele escura são denominados krshna twach (de pele negra): “… desviando os de pele negra (कृष्णाम् त्वचम्–krshnām twacham)” (Wilson, 1990: vol. 05, 454).[12] Em IV.16.13, é mencionada a seguinte façanha de Indra: “… tu que tem matado cinquenta mil negros (कृष्णानि–krshnāni) …” (idem: vol. 03. 209). Na passagem I.130.08, Indra defende seus adoradores arianos (āryas) e arranca a pele negra (twacha krshna) dos agressores (idem: vol. 02, 30). Nos códigos de leis (dharmasūtras), a expressão krshna twach (pele negra) é substituída por krshna varna (cor negra): “O pecado que um brâmane comete (é extinto) servindo uma pessoa de cor negra (krshnam varnam) …” (Āpastamba Dharmasūtra, I.27.11 – Olivelle, 1999: 38).

O sistema hindu de castas e de segregação dos párias foi criado com base na cor da pele, portanto inicialmente um critério racial, com os arianos de pele clara no topo da hierarquia social, enquanto os nativos, ou descendentes de nativos, de pele escura, na base. A distinção de cor foi tão importante que, mais tarde, a palavra Varna (cor) assumiu o significado de casta. Com o tempo todas estas raças se misturaram formando então um muito maior número de sub castas (Jātis).[13] O Manusmrti dedica um longo capítulo para regular a vida e as relações entre as numerosas castas mistas (X.01-73). Atualmente, com a multiplicação, o número de Jātis (sub castas) na Índia é incontável, nem mesmo os hindus conseguem conhecê-las todas.

Opiniões Contrárias

O sistema de castas está muito bem elaborado nos Códigos de Leis, porém na prática existem casos, no passado indiano, de líderes tribais sem casta que se auto proclamaram kshattriyas, após conseguirem poder militar (Srinivas, 1962: 65-6). A atual Constituição Indiana não o reconhece, porém, na prática, ainda é praticado entre a imensa maioria da população hindu, sobretudo a mais ortodoxa.

main-qimg-a1f24986a67d9236d1d2c4818fafa567Este injusto sistema de divisão social (castas e párias), baseado no nascimento, é uma afronta, do início ao fim, à Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em 10 de dezembro de 1948. Já mesmo em seu Preâmbulo, esta aclamada Carta desautoriza a discriminação através de castas e de párias: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (DUDH, preâmbulo § 01). Portanto, para esta Carta, a humanidade é uma grande família e que os direitos são iguais a todos, portanto ela não deve ser dividida em castas e em párias. O artigo 1º é mais direto: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (DUDH, art. 01). O artigo 02, § 01 é ainda mais direto: “Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião pública ou de qualquer natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (DUDH, art. 02, § 01). Quanto à rigorosa divisão ocupacional para os membros das castas hindus e para os párias, o artigo XXIII, § 01, recomenda: “Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho…” (DUDH, art. XXIII, § 01).

Paradoxalmente, a Índia é signatária desta Declaração desde 30 de outubro de 1945, portanto mesmo antes de sua adoção oficial pela ONU em 10 de dezembro de 1948. Em razão do caráter discriminatório e injusto, são muitos aqueles que consideram a divisão dos hindus em castas e em párias como “a mais desastrosa e maléfica de todas as instituições humanas”, em outras palavras, “é o mais nocivo, desumano e cruel sistema social que poderia ser inventado para amaldiçoar a raça humana”.

A Pretensa Universalidade do Gītā

            As religiões fundadas até o século XVIII e.c. tinham suas mensagens originais dirigidas para apenas um povo, portanto eram religiões étnicas. Algumas foram inicialmente proclamadas para um povo, mas depois difundidas universalmente, exemplos: Budismo (originalmente para o povo hindu), Cristianismo (originalmente para o povo judeu), Islamismo (para o povo árabe), etc. Entretanto, a partir do século XIX e.c., com a internacionalização da língua inglesa e o maior conhecimento global, começou a surgir os fundadores de religiões que pregaram, não apenas para um povo, mas para toda a humanidade. Estas novas doutrinas com mensagens universais foram batizadas pelos historiadores de Novos Movimentos Religiosos. Na Índia, esta ocorrência não foi diferente de outras partes do mundo, muitos gurus indianos começaram a entender que algumas de suas doutrinas e de suas práticas não deveriam se limitar somente ao povo hindu, pois tinham um caráter universal, então uma quantidade de gurus indianos desembarcou no Ocidente, a partir do século XX, trazendo com eles a doutrina hindu descontextualizada do ambiente hindu e adaptada para o contexto universal. A culminação deste intercâmbio aconteceu durante o Movimento Contracultura dos anos 1960-70, quando o misticismo oriental se tornou modismo.  Dentre os livros hindus, o que mais pareceu transmitir uma doutrina universal foi o Bhagavad Gītā, por isso foi o mais divulgado no Ocidente. Indubitavelmente, a nova religião que mais contribuiu para a universalização do Gītā foi o Movimento Hare Krshna.

            No entanto, se o Bhagavad Gītā é um texto universal ou um texto étnico é uma discussão que divide os intérpretes deste popular livro até hoje. Isto é, enquanto alguns pensam que o Gītā anuncia uma mensagem para toda a humanidade, independente da etnia, outros entendem que ele é um texto eminentemente étnico, portanto dirigido exclusivamente para a comunidade hindu. Então, com base nesta discussão é que iremos mostrar em seguida os artifícios utilizados pelos defensores da universalidade do Gītā, para que este parecesse um texto universal, através do encobrimento das passagens onde são mencionadas as particularidades do Hinduísmo, atestando assim o seu direcionamento para a etnia hindu, sendo uma das mais exclusivas, o sistema de castas (वर्ण धर्म-varna dharma), fundado inicialmente com base na cor (varna) da pele, portanto, um sistema racista e xenofóbico.

As Castas no Gītā

            Desde os tempos antigos, o expediente mais astuto para manipular o entendimento de um texto tem sido a alteração da tradução para o sentido que o tradutor pretende que o leitor entenda. Então, conforme a tradução nas mãos do leitor, que desconhece a língua sânscrita, este poderá concordar imediatamente que o Gītā é um livro com uma mensagem que não é dirigida para o povo hindu, mas sim para toda a humanidade. Então, em seguida, iremos mostrar a maneira que os defensores da universalidade do Gītā encobriram as menções ao sistema de castas (varna dharma), a fim de que este livro não parecesse um texto etnicamente hindu.

Uma explícita menção ao sistema hindu de castas no Gītā aparece na passagem IV.13, onde Sri Krshna se auto proclama o seu criador, na seguinte frase: चातुर्वर्ण्यं मया सृष्टं–chāturvarnyam mayā srshtam, a qual pode ser traduzida, sem acréscimos interpretativos, da seguinte maneira: “as quatro castas foram criadas por mim”. Entretanto, alguns tradutores, a fim de desviar a explícita menção ao sistema hindu de quatro castas nesta passagem, traduziram-na com um sentido alternativo. Por exemplo, Swami Prabhupada, do Movimento Hare Krshna, o maior responsável pela popularização internacional do Gītā, traduziu a expressão chāturvarnyam (as quatro castas) por “as quatro divisões da sociedade humana” (Prabhupada, 2004: 288). No comentário deste verso, ele mencionou os nomes das quatro castas hindus, porém não especificou que é uma criação particularmente hindu, pois para ele, estas são as quatro divisões da sociedade humana, ou seja, o sistema hindu é considerado uma divisão de toda sociedade humana. Enfim, o chatur varnyam é um sistema de divisão de castas particularmente hindu e não de toda sociedade humana. Sabemos que outras sociedades possuíram, ou ainda possuem, divisões de castas, de classes, de categorias, etc., mas cada uma foi (ou ainda é) diferente da outra e, nem sempre, em número de quatro divisões.

Outra tradução do Gītā com pretensão universalista, a recensão da Suddha Dharma Mandalam, cujo arranjo de capítulos e de versos é diferente da versão comum, por isso o verso tratado acima aparece na passagem IV.07 (ao invés de IV.13), traduziu a frase chāturvarnyam mayā srshtam por “Por mim, a ordem quaternária foi instituída…” (Row, 1939: 34), sem especificar o que é esta “ordem quaternária”, uma vez que existem incontáveis ordens quaternárias no mundo. Esta tradução vaga mostra a intenção subjacente de encobrir a menção ao sistema hindu de quatro castas (chāturvarnyam).

Hindu-Marriage-Tradition

A endogamia é uma lei no sistema hindu de castas.

Embora um ativo combatente da discriminação das castas, Mahātma Gandhi traduziu chāturvarnyam por “a ordem das quatro varnas (castas)”, no comentário desta passagem, ele explicou o papel de cada casta, seguindo a ortodoxia hindu, mas observou que os papeis não representam uma superioridade de uma casta sobre a outra. Agora, o curioso é observar que os shūdras sempre executam as tarefas mais baixas, enquanto os brâmanes e os kshāttriyas as tarefas mais nobres.

Sri Aurobindo traduziu esta expressão por “ a quádrupla ordem”, e a definiu como “a lei quádrupla das atividades humanas” (Aurobindo, 2004: 11), tentando também estender algo tão étnico e peculiar à cultura hindu, tal como as varnas, para algo comum às atividades humanas em geral.

O ilustre S. Radhakrshnan, ex-professor de Oxford e ex-presidente da índia, outro defensor da universalidade do Gītā, também traduziu chāturvarnyam por “ordem quádrupla” e comentou que varna é uma classe determinada por temperamento e vocação e não por nascimento (jāti) e hereditariedade (Radhakrishnan, 1949: 160-1). Bem, se é assim, por que o nome varna (cor)[14] para casta?

As Virtudes e as Ocupações

            Diferente da passagem anterior, no trecho seguinte não foi possível, para os defensores da universalidade do Gītā, deformarem a tradução, a fim de encobrirem a menção às quatro castas, uma vez que as menções são muito explícitas e específicas. Uma passagem com uma redação, até certo ponto, desajeitada, visto que nos versos XVIII 42 e 43, o karma (कर्म) dos brâmanes e dos kshāttriyas é listado como virtudes, enquanto que, no verso XVIII.44, o karma (कर्म) dos vaishyas e dos shūdras é listado como ocupações. Os párias (sem castas) são desdenhosamente omitidos, transmitindo a ideia de que, importantes são aqueles que possuem uma casta, enquanto os sem castas não são importantes para a sociedade, tal como veremos em seguida. Também, a tradução da palavra karma é divergentemente vertida, pois é traduzida por ação (ou ações), por dever (ou deveres) ou por qualidade (ou qualidades), de modo que, além do sentido diferente, uns a traduzem no singular, enquanto outros a traduzem no plural.

Então, em razão da dificuldade de alterar a tradução, os tradutores universalistas justificaram a menção às quatro castas através de comentários, explicando que, na visão do Gītā, as ocupações e as virtudes dos membros das quatro castas não são determinadas pelo nascimento, mas sim pela natureza própria (swabhāva) de cada indivíduo. Então, enquanto alguns intérpretes entendem que o Gītā prega a visão hindu ortodoxa do sistema de castas, outros interpretam que o Gītā foi revelado a fim de trazer uma nova interpretação da função social das castas, livre do fator hereditário.

O verso XVIII.41 menciona a divisão das ações (ou deveres) dos membros das quatro castas conforme as qualidades natas (swabhāva) de cada um deles:

व्राह्मक्षत्त्रियविशां शूद्रणां च परंतप ।

कर्माणि प्रविभक्तानि स्वभावप्रभवैगुणैः ॥ ४१ ॥

Brāhmanakshattriyavishām shūdrānām cha paramtapa

Karmāni pravibhaktāni swabhāvaprabhabavairgunaih

“As ações (ou deveres) dos brâmanes, dos kshāttriyas, dos vaishyas e dos shūdras, Ó Paramtapa[15] (Arjuna), são divididas pelas qualidades (gunas) derivadas da natureza própria (swabhāva) deles” (XVIII.41).

            Os que entendem que o Gītā está vinculado ao tradicional sistema hindu de castas, interpretam o termo swabhāva como a natureza nata daquele que nasceu em uma determinada casta, enquanto os oponentes desta visão interpretam que a swabhāva está na natureza própria de cada indivíduo, a qual independe da sua casta, por isso o Gītā não prega um sistema de casta com base no nascimento e na hereditariedade. Portanto, o que faz um brâmane não é o seu nascimento, mas sim as suas virtudes. S. Radhakrishnan comentou este verso assim: “a ordem quádrupla (quatro castas) não é peculiar à sociedade hindu. Ela é de aplicação universal. A classificação depende dos tipos de natureza humana. Cada uma das quatro classes (castas) tem certas características bem definidas, embora elas não devem ser entendidas como exclusivas. Elas não são sempre determinadas pela hereditariedade”. Mais adiante ele completa: “O Gītā não pode ser o sustento da ordem social vigente com rigidez e confusão. Ele admite a teoria das quatro ordens (castas) e amplia seu horizonte e seu significado” (Radhakrishnan, 1949: 364). No final do comentário deste verso, ele concluiu: “as quatro classes (castas) não são determinadas pelo nascimento ou pela cor, mas pelas características psicológicas que se encaixam em nós para definir as funções na sociedade” (idem: 365).

            Este verso e os três seguintes, nos quais são relacionadas as qualidades e as ocupações dos membros das castas, dão espaço para esta última interpretação, mas como veremos nas passagens mais racistas e xenofóbicas do Gītā, na seção seguinte, o Gītā não está tão distante do sistema ortodoxo hindu de castas.

            Os versos XVIII.42-4 relacionam o comportamento (karma) de cada um dos membros das quatro castas. Dos brâmanes e dos kshāttriyas são listadas as virtudes, enquanto que, estranhamente, dos vaishyas e dos shūdras são mencionadas as ocupações, todas sob a denominação de कर्म: (karma).

Então, a brahmakarma (ação do brâmane) é: serenidade, autocontrole, austeridade, pureza, tolerância, retidão, sabedoria, conhecimento e fé. A kshatramkarma (ação do kshattriya) é: heroísmo, majestade, firmeza, habilidade, coragem para não fugir da batalha, generosidade e capacidade para governar. A vaishyakarma (ação do vaishya) é: agricultura, criação de gado e comercio. O serviço é a karma do shūdra. Os párias, (os sem-castas) não são mencionados, talvez o autor (ou os autores) do Gītā não os considerou como pessoas, ou seja, só tem dignidade quem tem casta.

Endogamia e “Adultério Étnico”  

            De todas as menções às castas no Gītā, as mais xenofóbicas são as mencionadas nas passagens I.41-3, quando Arjuna menciona a sua preocupação com a mistura de casta (वर्णसंकरः-varnasamkarah). Para aqueles que entendem que o Gītā não prega um sistema de casta com base no nascimento (जातिधर्म-jātidharma) e na hereditariedade, tampouco com base na raça (वर्ण–varna, cor da pele), os versos seguintes deixam claros o preconceito endogâmico e a xenofobia da Arjuna.

अधर्माभिभवात् कृष्ण प्रदुष्यन्ति कुलस्त्रियः ।

स्त्रीषु दुष्टासु वार्ष्णेय जायते वर्णसंकरः ॥ ४१ ॥

Adharmābhibhavāt krshna pradushyanti kulastriyah

Strīshu dushtāsu vārshneya jāyate varnasamkarah

“Da predominância da ilegalidade (adharma), ó Krshna, as mulheres da família são corrompidas; quando as mulheres são corrompidas, ó Vārshneya (Krshna), nasce (jāyate) a mistura de casta (varnasamkara)” (I.41).

            A menção aqui é quanto às mulheres que se casam com homens de outras castas, então a pureza étnica é manchada.

A primeira linha do verso I.42 condena ao inferno aqueles que promovem a mistura de casta:

संकरो नरकायैव कुलघ्नानां कुलस्य च । ४२ ।

Samkaro narakāyaiva kulaghnānām kulasya cha

“A mistura (de casta) leva para o inferno os destruidores da família e a família também” (I.42).

            O verso I.43 menciona as consequências resultantes da impureza étnica nas leis de casta (जातिधर्माः-jātidharmāh) e nas leis da família (कुलधर्माः-kuladharmāh):

दोषैरेतैः कुलघ्नानां वर्णसंकरकारकैः ।

उत्साध्यन्ते जातिधर्माः कुलधर्माश्च शाश्चताः ॥ ४३ ॥

Doshairetaih kulaghnānām varnasamkarakārakaih

Utsādhyante jātidharmāh kuladharmāshcha shāshchatāh

“Pelos pecados dos destruidores de família, que criam a mistura de casta (varnasamkara), as leis de casta (jātidharma) são destruídas e as eternas leis da família também” (I.43).

            Os versos acima foram pronunciados por Arjuna, no primeiro capítulo, quando ele estava receoso de lutar, então advertiu Krshna sobre o que poderá ocorrer com a morte de milhares de soldados, ocorrência que destruirá muitas famílias em função da guerra. Um dos seus temores era o de que, com a morte de muitos guerreiros (kshāttriyas), o resultado seria a sua escassez após a batalha, o que levará as mulheres a se casarem com homens de outras castas, promovendo assim a mistura de casta (varnasamkara). Em suma, a ocorrência de algo como um “adultério étnico”.

De acordo com os versos acima, é possível perceber que Arjuna não apenas reconhece o sistema hindu de castas (varnadharma), com base no nascimento (jātidharma), como também o estima ao ponto de acusar preconceituosamente aqueles que promovem a mistura de castas (varnasamkara) de “destruidores da família” (kulaghnāh) e, o que é ainda mais xenofóbico, condená-los ao inferno (narakah).

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Arjuna (esq.) emitiu ideias endogâmicas e xenofóbicas quanto às castas.

Swami Bhaktivedānta Prabhupada, o fundador do Movimento Hare Krshna e tradutor da versão do Gītā mais conhecida internacionalmente, traduziu a expressão mistura de casta (varnasamkara) por “prole indesejada” (Prabhupada, 2004: 83).[16] No comentário deste verso, ele procurou desviar o sentido de “mistura de casta” para o sentido de “adultério das mulheres”, ou seja, as filhas e os filhos indesejados nascem em virtude das práticas adúlteras das mulheres. Também, acrescentou o seguinte comentário misógino: “Tal como as crianças são muito inclinadas a serem enganadas, as mulheres igualmente são muito inclinadas à degradação. Por isso, ambas, as crianças e as mulheres, precisam de proteção dos membros mais velhos da família. Ocupadas com as práticas religiosas, as mulheres não serão levadas ao adultério”. E mais adiante: “…as mulheres geralmente não são inteligentes e por isso não são dignas de confiança” (idem: 83).

S. Radhakrishnan procurou diminuir a importância destes versos alegando que “o atual sistema de casta não corresponde ao ideal do Gītā”, mas traduziu varnasamkara por “confusão de castas” (Radhakrishnan, 1949: 93). Já a recensão do Gītā da Suddha Dharma Mandalam, apesar de mais extensa e com uma distribuição diferente dos versos, omite estes três versos, I.41-3, (Row, 1939). Nas recensões da Caxemira editadas por S. K. Belvalkar e por S. Sankaranarayanan, estes versos aparecem no mesmo posicionamento (I.41-3) da recensão comum (Belvalkar, 1941: 23 e Sankaranarayanan, 1985: 11-2).

A passagem acima expõe o barbarismo cultural do Bhagavad Gītā, o qual reconhece a xenofóbica divisão de uma sociedade em castas com base na cor da pele (varna), ignora os párias, prescreve a discriminação étnica e a endogamia, bem como impõe a distribuição das ocupações sem a livre escolha do trabalhador e, o que é mais endogâmico, a atribuição de crime para aquela mulher que se casa com alguém de fora da sua casta, cometendo assim um “adultério étnico”, sendo o resultado a destruição da família e a punição a ida para o inferno.

Com uma mentalidade tão discriminatória como esta, como é possível acreditar que o Bhagavad Gītā transmite uma mensagem universal e eterna, tal como propõem os pregadores da sua universalidade? Pois, a discriminação étnica, a endogamia e a xenofobia contrariam as disposições de duas das mais consensuais Cartas aceitas entre as nações: a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (ONU, 1979), sobretudo em uma época tão globalizada como a atual, com populações cosmopolitas.

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 Notas

[1] Publicado na Revista de Estudos Orientais nº 5, do Departamento de Letas Orientais da USP, em maio de 2006, p. 65-80.

[2]Também conhecido por Īshā Upanishad ou Īshopanishad, um dos Upanixades Maiores (Principais), em apenas 18 versos.  

[3] Mais detalhes sobre as divergências nas traduções dos Upanixades são encontrados nas notas críticas das minhas traduções comparadas do Īshāvāsya Upanishad (p. 61-85) e do Katha Upanishad (p. 95-186). Também, um estudo explicando os motivos que levam à dificuldade de traduzir textos em sânscrito aparece nas Notas sobre a Tradução do Katha Upanishad p. 11-24, ver: Botelho, 2014 e 2015a.

[4] Local onde aconteceu a Grande Batalha narrada no Mahābhārata.

[5] A diferença de um verso (shloka) acontece em razão de algumas edições incluírem um verso adicional no capítulo XIII verso 01, dito por Arjuna, com fundamento na edição Kumbakonam do Mahābhārata. Entre as traduções consultadas, os seguintes tradutores incluíram este verso: Nikhilananda, 1944: 283; Radhakrishnan, 1949: 300; Swarupananda, 1967: 288; Das, 1979: 233; Niketan, 2003: 267; Prabhupada, 2004: 652; Aurobindo, 2004: 30 e Theodor, 2016: 103.

[6] Os versos adicionais da recensão da SDM são extraídos de trechos do Mahābhārata. Para aprofundamento, ver: Bagchee, 2016.

[7] Segundo Louis Dumont, o substantivo inglês e francês “caste” é de origem portuguesa e espanhola, “casta”, no sentido original de “pura”, derivada do Latim “casta” (masculino: castus), pura, santa, virtuosa (Dumont, 1999: 21).

[8] Atualmente este sistema de Etapas da Vida (Ashrama) não é seguido tão rigorosamente como no passado.

[9] A rigor, são três fios entrelaçados, que representam as diversas trindades que existem no universo: Sat-Chit-Ānanda, Brahma-Shiva-Vishnu, Satwa-Rajas-Tamas, Gnāna-Icchā-Kriyā, etc.

[10] As traduções destes versos por Ralph T. H. Griffith e por H. H. Wilson divergem em alguns detalhes, preferi a tradução deste último (Wilson, 1990: vol. VI, 314). Este mito da criação das quatro castas a partir do Purusha é confirmado no Manusmrti, I.31 e 87; X.45.

[11] Palavra composta derivada de: त्वच्–twach (pele) e असिक्नी–asiknī (de cor escura, preta).

[12] Muito conhecido como o herói e a encarnação da divindade, o termo Krshna também significa “negro, escuro”.

[13] O substantivo feminino jāti (जाति) literalmente significa “nascimento”, deriva do particípio passado नात (jāta), nascido, e da raiz verbal जन् (jan) “nascer”. Por este nome é possível perceber a importância da divisão de castas com base no nascimento pelos hindus. A palavra jāti é usada também no sentido de tribo, família, descendente e casta.

[14] Mais especificadamente, cor da pele.

[15] Literalmente traduzida, esta palavra composta significa “mortificador” (तप-tapa) de “outro” (परं-param), porém mais comumente traduzida por “destruidor do inimigo”.

[16] Na sua versão do Gītā, o verso I.41 aparece em I.40.

Um comentário sobre “O Encobrimento das Menções às Castas no Bhagavad Gītā

  1. Realmente esses comentários misóginos, negação extrema do mundo material, delírios etc da versão do Prabhupada me fez refletir sobre as distorções, tudo para enquadrar esse clássico na SEITA Hare Krishna…

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