Sallekhanā: Preparação Religiosa para a Morte ou Suicídio Gradual?

por Octavio da Cunha Botelho

Introdução

            A capacidade de uma pessoa de se indignar ou não com esta ou aquela prática obscena dependerá do meio cultural no qual foi educada, ou da maneira pelo qual esta prática é entendida. Às vezes, as obscenidades são tão bem encantadoramente executadas e tão bem retoricamente explicadas, que a persuasão religiosa ofusca o julgamento daqueles que as testemunham. Pois, o poder persuasivo do discurso e do encantamento religiosos é influente, dependendo do grau de vulnerabilidade daquele que assiste, ouve ou lê. De modo que, enquanto que muitos, de fora do ambiente jainista, se horrorizarão ao conhecer o ritual da Sallekhanā (a prática religiosa do jejum até a morte), estes se horrorizarão ainda mais ao saber que esta prática é acompanhada de alegria e de festa. Ou seja, parecerá absurdo alguém festejar o processo de definhamento do corpo de um jejuante, pois aos olhos de muitos outros, são cenas chocantes e abomináveis, difíceis de serem suportadas. Entretanto, tudo dependerá de como se entende a natureza e a fundamentação por trás deste peculiar ritual. Os jainistas apresentam extensa argumentação, com base nas suas crenças antigas, para justificar a sua prática, acompanhada de um grande esforço na intenção de isentá-la da imputação de suicídio. Portanto, enquanto que, para alguém de fora, a prática da Sallekhanā é uma obscenidade, para o jainista ela é uma sublimação.

Uma jejuante da Sallekhana cercada por assistentes.

            Sendo assim, o estudo seguinte, além de apontar inicialmente o caráter pessimista da cultura jainista, quanto ao corpo e ao mundo (samsāra), descreverá resumidamente o que é o jejum até a morte no ritual da Sallekhanā, analisará os argumentos prós e contras da sua prática, discutirá se esta é ou não uma forma sábia de morrer (Pandita Marana), bem como entrará na discussão se a mesma é ou não uma forma de suicídio. Então, para tanto, o estudo não se limitará à visão apenas a partir de dentro da cultura jainista, mas estenderá para fora da bolha religiosa, abordando também e, predominantemente, a visão laica sobre o suicídio. Ademais, o estudo seguinte mostrará a capacidade de influência da doutrinação jainista sobre os seus seguidores, sobretudo o forte impacto da crença na reencarnação e na Libertação, ao ponto dos mesmos assumirem votos e executarem práticas, tal como a Sallekhanā, que para aqueles de fora desta tradição, impressionam pelo alto grau de barbarismo.           

Suicídio em Geral

            Termo derivado da combinação do antepositivo latino “sui” (si, se, lhe, si mesmo) e do pospositivo latino “cidum” (ação de matar, assassinato), este último relacionado ao substantivo latino caedēs (assassínio, morte violenta, matança), portanto significa: “assassínio de si mesmo”. Na língua sânscrita, os termos para suicídio mais utilizados são: आत्महत्या – Ātmahatyā, आत्मवध – Ātmavadha e आत्मवध्या – Ātmavadhyā, todos significando “auto assassinato”, “assassinato de si mesmo”. Daí o substantivo आत्महन् – Ātmahan: “suicida”, “assassino de si mesmo”. A palavra आत्महत्या – Ātmahatyā também é formada do antepositivo आत्म – ātma (si mesmo) com o pospositivo हत्या – hatyā (assassinato), resultando assim em “assassinato de si mesmo”, “suicídio”.  Entretanto, a palavra ātma é mais conhecida, entre os leitores, através do significado de “Eu”, portanto Ātmahatyā tem também o significado místico de “assassinato do Eu (Ātman), assassinato do Espírito”, tal como na frase do Ishāvāsya Upanishad, verso III, आत्महनो जनाः –  ātmahano janāh (pessoas assassinas do Eu – Ātman), referindo àqueles que são indiferentes ao autoconhecimento ou àqueles que reconhecem que o Eu (Ātman – Espírito, Alma) não existe.    

De modo que, qualquer morte, quando a ação física é cometida pela própria vítima, ou a mesma se oferece à morte,[1] é um ato de suicídio, independente do motivo ou dos meios utilizados. Para que seja um ato de suicídio é preciso que a ação de tirar a vida, ou de deixar que a morte aconteça, seja praticada pelo próprio autor, qual seja, o suicida, é alguém colocar fim a sua própria vida. Enfim, suicídio é um fato físico e não psicológico ou ideológico, tal como interpretam alguns autores jainistas, veremos isto mais adiante. Não é o motivo por trás do ato, ou os meios empregados, que define o que é e o que não é suicídio, mas sim o simples ato físico de matar a si mesmo, ou de se oferecer para a morte, os motivos apenas caracterizam as diferentes modalidades de suicídio o que, conforme cada sociedade ou cada legislação, poderá julgar como imoral ou como criminoso respectivamente. Também, existe uma evolução no tempo, algumas modalidades de suicídio no passado não são mais aprovadas em algumas sociedades atuais, enquanto algumas modalidades ainda são preservadas, por exemplo, a Sallekhanā, praticada pelos jainistas, mediante a alegação dos seus defensores de que ela não é uma forma de suicídio, mas sim um sereno e voluntário processo de “preparação religiosa e sábia para a morte”.

Os suicídios são majoritariamente conhecidos pela motivação emocional ou patológica, mas existem também os suicídios de motivação ideológica.

A prática de tirar a própria vida (suicídio) é um assunto discutido há muito tempo (para conhecer a antiguidade e a diversidade de perspectivas, consultar: Battin, 2015) e possui muitas avaliações distintas. Em linhas gerais, para efeito de facilitar o estudo aqui, a prática pode ser dividida em três motivações, alguns suicídios combinam mais de um motivo:

  1. Suicídio por Motivo Pessoal
  2. Suicídio Medicamente Assistido e
  3. Suicídio por Motivo Ideológico

a) Suicídio por Motivo Pessoal é aquele resultante do desenvolvimento de algum transtorno mental ou de uma forte emoção, clinicamente diagnosticado em regra geral como suicídio patológico. Acontece geralmente em razão de frustação, de decepção e/ou de perda. Esta é a forma de suicídio mais conhecida e mais reconhecida. Incluídos nesta categoria estão os suicídios honoríficos e os suicídios leais, praticados em razão da honra e da lealdade para com outra pessoa respectivamente, a qual poder ser um semelhante ou um superior. Os exemplos conhecidos são os suicídios de samurais em nome da sua honra, o sacrifício Satī de viúvas, comuns no passado da Índia, em razão da lealdade ao marido (somado ao motivo ideológico-religioso de se juntar a ele no outro mundo), os soldados japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, os quais se suicidavam antes de serem feitos prisioneiros pelas tropas norte-americanas, durante a Guerra no Pacífico (esta última forma de suicídio combina honra, lealdade e nacionalismo). O suicídio pela honra pode também acontecer quando alguém deseja evitar uma morte que considera desonrosa e então se suicida antes da execução. Um caso conhecido na história é o do ex-comandante da Luftwaffe, Hermann Goering, condenado à morte no Julgamento de Nuremberg, porém conseguiu se suicidar, ainda na sua cela em 15 de outubro de 1946, antes da execução.

b) Suicídio Medicamente Assistido é aquele que acontece nos casos de doentes terminais irreversíveis, cuja decisão de tirarem a suas vidas em razão da irreversibilidade da doença, é tomada pelo paciente com a ajuda e a assistência do médico para a administração dos fármacos e a orientação das doses. Trata-se de suicídio, uma vez que é o paciente quem decide e auto administra a dose do fármaco letal para colocar fim a sua vida, portanto é diferente de eutanásia, cujo médico é quem administra o fármaco letal para tirar a vida do doente terminal, ou interrompe os meios de prolongamento da vida do mesmo. É necessário que o doente seja um doente terminal com prognóstico de seis meses ou menos de vida, para que seja possível solicitar uma dose de fármaco letal para auto administração, a fim de colocar termo à vida. O Suicídio Medicamente Assistido é permitido nas legislações da Holanda, da Suíça, da Bélgica, de Luxemburgo, do Canadá, da Alemanha e de sete estados dos EUA.

c) Suicídio por Motivo Ideológico é aquele que não é motivado por uma causa pessoal, portanto é externo ao praticante e pode acontecer pelos seguintes motivos:

1) Motivo Social: a greve de fome, por exemplo, em razão de alguma causa social ou de um protesto social ou trabalhista é um exemplo bem conhecido de ameaça de suicídio por uma causa social. As históricas greves de fome de Mahātma Gandhi combinavam elementos sociais, estadistas e religiosos.

2) Motivo Religioso: é aquela prática na qual alguém se oferece a tirar a sua própria vida em razão de uma ideologia religiosa. Os exemplos conhecidos na história são o martírio religioso, o terrorismo suicida (homens e mulheres bombas, as precipitações de aviões suicidas contra as Torres Gêmeas e contra o Pentágono, nos atentados de 11 de setembro de 2001 nos EUA e outros tantos), o Sacrifício de Satī na Índia (viúvas que se atiram na pira funerária do marido recém falecido, a fim de reencontrá-lo no outro mundo) e o ritual de jejum até a morte (Sallekhanā) dos jainistas. O chocante suicídio em massa de 918 seguidores do pregador Jim Jones, ocorrido em novembro de 1978, em Jonestown, Guiana, combina os traços de suicídio religioso e de suicídio por lealdade. 

3) Motivo Político: em razão de uma causa política, luta pela independência, luta separatista e luta por autonomia. Exemplos: missões suicidas de separatistas no Sri Lanka, suicidas tibetanos pela independência do Tibete e monges suicidas pelo fim da guerra do Vietnã.

4) Motivo Ambiental: ambientalistas que se sacrificam para proteger o meio ambiente, alguns abraçam as árvores quando da tentativa dos agricultores de cortá-las com a moto-cerra.

5) Motivo Nacionalista: suicídio realizado em razão do extremo amor pela pátria, exemplo: os pilotos suicidas Kamikazes, os quais atiravam seus aviões contra os navios dos aliados durante a Guerra no Pacífico na Segunda Guerra Mundial.

As greves de fome de Mahatma Gandhi se tornaram historicamente conhecidas.

            Apesar destas classificações acima não cobrirem a totalidade dos diferentes tipos de suicídio, ao menos é possível ter uma noção da diversidade de motivos que levam alguém a tirar a sua própria vida, pois estes são os motivos mais frequentes. Ideologicamente, alguns fatores influenciam, tal como resume Margaret P. Battin: “O ato de suicídio está necessariamente conectado com as visões de fundo sobre o significado da morte, o valor da vida, o relacionamento entre o indivíduo e a comunidade, a natureza do sofrimento, o significado da punição, a existência da vida após a morte, a natureza do eu e muitas outras questões filosóficas” (Battin, 2025: 10). Um estudo abrangente da prática do suicídio nos leva a concluir, tal como observou Margaret P. Battin, que “uma completa compreensão do suicídio não pode começar com a suposição de que todo suicídio é patológico, que ele pode sempre ser atribuído à depressão e à doença mental, que é uma matéria de anormalidade bioquímica, que ele é sempre errado, ou que não existe questões éticas sobre o suicídio” (Idem: 10).[2] Enfim, o suicídio não tem motivos apenas patológicos, ele tem também motivos ideológicos.

Aqui nos interessará a prática de tirar a própria vida, por motivo ideológico-religioso, de uma maneira muito peculiar, isto é, o ritual de jejum até a morte conhecido por Sallekhanā, praticada por seguidores do Jainismo, uma religião indiana, porém pouco conhecida fora da Índia. Os jainistas insistem veementemente que Sallekhanā não é suicídio, mas sim uma preparação religiosa e sábia para a morte, o que é motivo de uma acalorada discussão, sobretudo em tribunais indianos, tal como veremos mais adiante.       

O Pessimismo nas Religiões

            Até o ponto em que é possível conhecer, não existe, tampouco existiu, uma religião soteriológica (salvífica ou libertadora), que pregue, ou que pregasse, que a vida é satisfação e alegria. Para todas elas, a vida é sofrimento, é dor, por isso a necessidade de buscar a salvação/libertação da dor, pois só existe felicidade na Salvação ou na Libertação. Por isso o pessimismo quanto à vida mundana permeia as doutrinas e as práticas destas tradições, nunca o otimismo ou a alegria de viver, apenas o otimismo pela salvação. De modo que não conhecemos uma religião soteriológica com uma mensagem dirigida para os indivíduos satisfeitos e alegres, a mensagem é sempre dirigida para o indivíduo deprimido. Sendo assim, a esperança pelo alívio do sofrimento nesta vida ou na vida futura é central nos ensinamentos destas religiões, bem como a confiante promessa de que tal objetivo é alcançável. Portanto, se a vida fosse alegria, ao invés de sofrimento, as religiões salvíficas, muito provavelmente, não teriam a necessidade da sua existência, a razão da religião enfaticamente soteriológica está na existência do sofrimento.  Então, a consequente ideia, entre os céticos, de que “a religião é o refúgio dos sofredores”. Assim, quando observamos as vidas daquelas pessoas felizes, para as quais a religião não é uma necessidade, e quando as comparamos com a mensagem centrada no sofrimento das religiões soteriológicas, somos levados a pensar que o mundo das pessoas felizes é diferente do mundo das pessoas infelizes. Porém, esta divisão não é tão inflexível, pois, mais frequentemente, o que testemunhamos é que as vidas dos indivíduos são intercalações de períodos felizes com períodos infelizes, a diferença está na duração. Os indivíduos que desenvolvem longos períodos de sofrimento são levados a entender a vida toda como sofrimento, então desenvolvem a depressão, por conseguinte se tornam vulneráveis à mensagem salvadora das religiões.

Nas tradicionais religiões indianas (Hinduísmo, Budismo e Jainismo) o enfoque pessimista é ainda mais acentuado.[3] Para todas elas, o Samsāra (संसार – o ciclo de nascimentos e mortes) é uma prisão de sofrimento, portanto só existe felicidade fora deste ciclo de reencarnação, ou seja, na Libertação (Moksha/Nirvāna). Todas elas enfatizam que o sofrimento é fruto da ignorância. O Budismo coloca o sofrimento (दुक्ख – dukkha) no centro das Quatro Nobres Verdades (चत्तरी अरियसच्चानी – cattarī ariyasaccānī). A primeira Nobre Verdade é a Verdade da Dor (dukkha), a segunda é a Verdade da Origem da Dor (dukkha-samudaya), a terceira é a Verdade da Supressão da Dor (dukkha-nirodha) e a quarta é a Verdade do Caminho para a Supressão da Dor (dukkha-nirodhagāminipatipadā).

Os jainistas, da mesma maneira, assumem uma visão pessimista da vida e, com isso, culpam e denunciam o corpo, como também os ganhos e os prazeres, aos quais ele está escravizado, como os motivos pela vida miserável. Para eles, uma vida mundana é uma vida de escravidão, não existe liberdade fora da renúncia da vida mundana. A mundanidade é escravidão. Os valores da alma estão sempre acima dos valores do corpo, por isso a severa austeridade praticada pelos jainistas, sobretudo pelos monges ou pelas monjas, o que transforma o Jainismo em uma das religiões mais austeras. A extrema severidade da sua austeridade reproduz o alto grau do seu pessimismo e desprezo pela vida secular, sobretudo nas disciplinas dos monges e das monjas. Para os jainistas, a sabedoria é sinônimo de pureza, portanto somente a purificação dos karmas acumulados na alma conduz ao conhecimento perfeito (kevalajnāna). Sendo assim, a pessoa pura é a pessoa sábia, mesmo se esta pessoa pura preserve as ingênuas crenças nas rudimentares especulações e na disposição para o cumprimento das coagentes regras e das extremas práticas dos jainistas, quase todas já provadas obsoletas e impróprias para a vida em uma atual sociedade esclarecida.

A Depreciação do Corpo Humano nas Tradições Indianas

            Com maior ou menor grau, quase todas as religiões apresentam, em uma passagem ou outra, uma visão pessimista. Enfatizam, concomitantemente, ideias depreciativas de diferentes setores da vida e do mundo. Apesar de não ser uma ideia generalizada que permeia toda a doutrina, sobressaem no enfoque depreciativo do corpo, diante de outras tradições, o Jainismo e o Budismo. O exagero repulsivo é feito, quase sempre, com a intenção de incentivar ou reforçar o desapego pelo corpo, e com isso fortalecer a prática da austeridade ou da meditação, portanto, estas passagens depreciativas do corpo estão mais para forças de expressão do que lições de anatomia, porém, impressionam pela virulência da repulsa ao corpo. Em um dos mais conhecidos textos budistas da literatura páli, o Dhammapada (धम्मपद),[4] na passagem XI.03-6 ou 148-51, o corpo humano é depreciado da seguinte maneira:

“Este corpo está degastado, um ninho de enfermidades e muito frágil. Esta pilha de corrupção (o corpo) quebra em pedaços, a vida na verdade termina na morte” (148).

“Que deleite existe para aquele que vê estes ossos brancos como cabaços descartados no outono? Que prazer poderá haver em neles olhar? (149).

“De ossos uma cidadela (o corpo) é feita, coberta de carne e sangue, nela reside a velhice e a morte, o orgulho e o engano” (150).

“As carruagens esplêndidas dos reis se desgastam, o corpo também chega à velhice…” (151), (Radhakrishnan, 1982: 108-9 e Palihawadana 2000: 28).

No Dīgha Nikāya II.22.05 (II.293), um texto canônico também da literatura páli da corrente Theravāda, é ensinado um exercício de meditação nas partes repulsivas do corpo:

“E mais, um monge reflete sobre o corpo das solas dos pés para cima e do couro cabeludo para baixo, algo como encoberto pela pele e repleto de diversas impurezas: Neste corpo existem cabelos, pelos, unhas, dentes, pele, carne, tendões, ossos, espinha, rins, coração, fígado, pleura, baço, pulmões, intestinos, estômago, excremento, biles, catarro, pus, sangue, suor, gordura, lágrimas, sebo, saliva, muco, escorrimento nasal e urina” (Barua, 2008: vol. II, 582-3).[5]

Outro texto páli vai mais longe na abominação ao corpo humano, o Visuddhimagga VI.195:

“Mas, por natureza, este corpo é um acúmulo de mais de 300 ossos, ligados por 180 juntas, presos por 900 tendões, coberto com 900 peças de carne, unido por uma pele molhada, coberto pelo tegumento, que tem poros grandes e pequenos, constantemente transpirando (impurezas) acima e abaixo, tal como um pote transbordando de gordura, um retiro de uma multidão de vermes, a morada da enfermidade, a base dos estados dolorosos, com um constante fluir de pus das 9 aberturas de feridas, tais como uma tigela que se quebrou, onde a imundice do olho goteja dos dois olhos, a imundice do ouvido dos orifícios dos ouvidos, a meleca do nariz das narinas, a comida, a biles, o catarro e o sangue da boca, o excremento e a água das aberturas abaixo, o fluido de suor impuro dos 99 mil raízes de cabelo, um corpo onde os mosquitos e outros se aglomeram, o qual, sem a prática de escovar os dentes, lavar o rosto, ungir a cabeça, banho, vestuários e ornamentos e assim por diante, não diferenciariam um rei caminhando com seu cabelo tosco e despenteado, em um estado primitivo, de vilarejo em vilarejo, de um lixeiro ou um proscrito social e assim por diante, o corpo sendo abominável  em qualquer um dos casos. Assim, quanto à impureza, mau cheiro, abominação repugnante, não há diferença entre o corpo de um rei e o corpo de um proscrito social” (Tin, 1922: part II, 223 e Warren, 1995: 298).

Os samurais praticavam o suicídio pela honra.

            Através de uma linguagem quase semelhante, o Código de Manu (मनुस्मृति – Manusmrti – VI.76-7) dos hindus, também deprecia o corpo, comparando-o com uma construção:

“Construído com vigas de ossos, (o corpo na forma de uma construção) seguro por tendões, rebocado com carne e sangue, revestido com pele, fedido, preenchido com urina e excremento, infestado com velhice e tristeza, a morada da doença, pleno de dor, coberto com poeira, ele (o discípulo) deve abandonar esta morada (o corpo) de fantasma” (Olivelle, 2005: 152).

O comentário Manubhāshya de Medhatithi, sobre esta passagem, compara o corpo com uma cabana de latrina e o chama de “a morada da urina e do excremento” (Jha, 1920-39: 251).

Também o Maitrāyana Upanishad III.04:

“Este corpo produzido do casamento é dotado com crescimento nas trevas, veio ao mundo pela passagem urinária[6], foi construído com ossos, enlameado com carne, coberto com pele, preenchido com excremento, urina, biles, lodo, medula, gordura, óleo e além de muitas impurezas…”.

No Jainismo, o grau de virulência da repulsa ao corpo humano não é menor. Shadakshari Settar coletou as seguintes depreciações do corpo extraídas do Paramatmaprakasa, uma obra de autoria do jainista Yogindudeva, editado por A. N. Upadhye, com introdução em inglês. Para este texto acima, o corpo (काय – kāya) é uma “casa arruinada no inferno” (नरकगृह – narakagrha), plena de imundice, é uma morada de miséria, a qual merece apenas condenação (Upadhye, 1978: 21). É impuro, é perecível. Sendo formado de elementos falhos e sujos, ele é aparentemente atrativo, mas, na realidade, é abominável. Ele se transforma em cinza quando cremado, e pó quando enterrado. O corpo não é nada mais do que uma árvore, embora coberto com pele. O ignorante confunde o corpo com a alma, o sábio não faz assim. A diferença entre o idiota e o sábio é isto: o sábio abandona o seu corpo porque ele é ciente da independência da alma, o ignorante prende-se ao mundo. O corpo não pertence a alguém. Alguns confundem o corpo sujo com a alma pura. Não percebendo que as roupas são separadas da pele. O corpo é o inimigo da alma, porque o corpo produz somente misérias. O sábio sabe que aquele que ajuda a destruir o corpo é um amigo, não aquele que ajuda a preservá-lo (Upadhye 1978: 21-2 e Settar, 1990: 04-5).

Uma posição muito diferente é a passagem no Novo Testamento em 1 Coríntios 3.16-7: “Você não sabe que você é o templo de Deus e que o Espírito de Deus reside em você. Se alguém destrói o templo de Deus, Deus destruirá aquela pessoa. Pois o templo de Deus é sagrado e você é aquele templo” (NRSV). A curiosidade é que, conforme o tema deste estudo, ao mesmo tempo que os cristãos desenvolveram a admiração pelo corpo como o templo de Deus, a partir destas frases do apóstolo Paulo, também desenvolveram a prática do auto flagelo e do martírio, este último uma forma ideológica de suicídio.  

Então, para os partidários da miserabilidade do corpo, a prática da mortificação não é uma crueldade com o corpo, mas sim uma elevação da alma, um resgate da soberania da alma diante do corpo, pois “o corpo é o inimigo da alma, porque o corpo produz somente miséria” (Upadhye, 1978: 22 e Settar, 1990: 05).

O Jainismo em Resumo

            Esta é uma religião pouco conhecida fora da índia, com cerca de quatro milhões de seguidores no continente indiano e algumas comunidades no exterior. Trata-se da religião “comprovadamente mais pacífica e mais austera do mundo” (Fohr, 2015: 01, ver também Jaini: 1979: 01s), o exagero na pacificidade e na austeridade chega a ser repugnante para o indivíduo secular ambientado na progressista cultura contemporânea. Os jainistas se vangloriam da alegação de que sua religião é a mais antiga de todas, embora faltam provas históricas para tanto, uma vez que quase todos os dados antigos são mitos.[7] Quanto ao rigor da austeridade, veja um exemplo da severidade e da justificativa jainista nas palavras de Sherry Fohr: “o celibato é tão importante na renúncia jainista, que um dos únicos momentos em que é permitido para os monges ou para as monjas cometer suicídio é se o celibato deles é ameaçado. Isto é porque a atividade sexual elimina o combustível ou o poder (shakti) necessário para progredir no caminho até moksha (libertação), e mesmo um instante de atividade sexual pode dissipar todo o poder que tem sido estocado pelo celibatário até aquele momento. É melhor morrer com aquele estoque de poder espiritual do que arriscar perdê-lo” (Fohr, 2015: 70).

            O termo Jainismo deriva do substantivo sânscrito जैन – jaina, que significa aquele que adora o जिन – Jina (vitorioso), nome atribuído aos santos (तीर्थंकराः – Tīrthankarāh, literalmente: construtores de vau)[8] da tradição jainista. Existiram 24 Tīrthankaras, o último foi महावीर – Mahāvīra (Grande Herói – 599-527 a.e.c.),[9] reformador do atual Jainismo. Seu nome de batismo era वर्धमान – Vardhamāna (Próspero). Os Tirthankaras mais venerados são: Neminātha (Arishtanemi), Pārshwa e, obviamente, Mahāvīra, os 22º, 23º e 24º Tirthankaras respectivamente. Mahāvīra foi um contemporâneo mais velho de Buda, bem como, ambos viveram aproximadamente na mesma região, leste da Índia, e são herdeiros da tradição shramana (asceta), uma tradição não-védica. Por isso, existem curiosas semelhanças doutrinárias entre a religião jainista e a budista, tantas que alguns dos primeiros pesquisadores europeus, que estudaram o Jainismo no século XIX, pensaram que ambas eram uma única religião, ou que o Jainismo era uma seita do Budismo. Alguns chegaram a pensar que Mahāvīra e Buda foram a mesma pessoa. Porém, com o subsequente aprofundamento do conhecimento das vidas de ambos, das doutrinas e das práticas, pelos estudiosos estrangeiros, foi possível perceber as muitas peculiares diferenças.

Imagem de Mahavira, o 24º Tirthankara do Jainismo, muitos a confundem com a de Buda, em razão das semelhanças.

Tal como nas outras duas grandes tradições indianas, Hinduísmo e Budismo, o Jainismo também é uma mensagem dirigida para o indivíduo sofrido e infeliz, ou talvez até mais pessimista, embora jainistas se defendem alegando que sua doutrina não é pessimista, enquanto um laico, após conhecer a doutrina jainista, irá se perguntar o que pode ser mais pessimista do que a cultura jainista. De modo que, é raro encontrar alguém com conquistas na vida que se disponha a levar a vida severamente austera dos renunciantes jainistas, por isso a grande maioria dos seguidores jainistas hoje é formada de leigos, cuja prática das rígidas regras ascéticas não é obrigatória, e não de ascetas (Fohr, 2015: 01). Dentre as regras de não-violência, está a prática de não maltratar as criaturas, inclusive as criaturas microscópicas, então os monges e as monjas jainistas usam máscaras no rosto, a fim de não absorverem acidentalmente organismos microscópicos. O rigor chega ao ponto dos ascetas e das monjas não tomarem refeições à noite, a fim de não passarem pelo risco de ingerirem involuntariamente organismos invisíveis durante a refeição, devido à escuridão.[10] As rígidas austeridades incluem a prática do jejum, alguns bem prolongados, o mais longo chega a um mês de duração, também a prática de arrancar os cabelos pela raiz de duas a cinco vezes por ano, caminhar descalço a maior parte do tempo durante o ano e não vestir roupas, portanto viver nu, dentre outras práticas ascéticas.

            O Jainismo tem que ser entendido a partir da grande divisão em duas correntes irreconciliavelmente rivais: a स्वेतांबर – Shwetāmbara (vestido de branco) e a दिघंबर – Dighambara (vestido de céu, nu), a primeira, em tese, mais liberal e a segunda, mais radical. O empasse centraliza-se na ideia de que se o asceta jainista deve vestir-se de branco ou deve viver nu, portanto a nudez é o motivo da rivalidade. Dentre as tantas outras controvérsias entre estas duas seitas rivais, as seguintes se destacam como as principais:

1.O papel da nudez na vida de santidade: Os Digambaras enfatizam que a prática da nudez como pré-requisito absoluto para o caminho do asceta, o único modo de conduta através do qual alguém pode se tornar verdadeiramente livre do pudor e da sexualidade, e com isso alcançar Moksha (Liberação). Já os Shwetāmbaras enfatizam a natureza opcional desta prática, enquanto eles censuram o apego à roupa, eles não admitem que a roupa por si seja um obstáculo para a salvação. Os Digambaras insistem que manter uma única posse é funcionalmente o equivalente a manter todas as posses, por isso eles negam que os monges Shwetāmbaras sejam monges de verdade.

2.A natureza da onisciência do Jina (santo jainista): Para os Digambaras, o Jina (santo jainista) não se ocupa em atividades mundanas e em nenhuma função corporal (tal como tomar refeições), uma vez que estas são consideradas contrárias à cognição onisciente. O Jina prega os seus ensinamentos por meio do som divino e mágico. Já os Shwetāmbaras percebem o Jina como alguém ocupado em atividades e funções humanas normais enquanto simultaneamente desfruta da cognição onisciente.

3.A posição da mulher: Os Digambaras acreditam que a mulher carece de corpo puro necessário para atingir Moksha (Libertação), por isso deve renascer como homem para que este objetivo seja alcançado. Os Shwetāmbaras assumem uma posição oposta, afirmando que as mulheres podem alcançar Moksha (Libertação) na vida atual, tal como o homem. Eles alegam que o décimo nono Tirthankara, Malli, foi uma mulher (Jain, 1979: 39-40).

            Embora o relacionamento entre os jainistas e os hindus hoje seja amigável, nem sempre foi assim, no passado esta relação intercalou momentos de hostilidades e de afabilidade, e até de ameaça de sincretismo. O primeiro Tirthankara, Rshabha, chegou até a ser incluído como uma encarnação menor de Vishnu (Dundas, 2004: 233). Do lado hostil, os jainistas atacaram os Vedas hindus condenando os seus rituais cruéis e violentos de sacrifícios humanos e animais, chegando a denomina-los coletivamente de himsashastra (doutrina da violência). “A prova conclusiva para os jainistas de que o Veda era uma escritura falsa, que pregava uma má doutrina, está na sua associação com o sacrifício animal” (Dundas, 2004: 234). Um autor jainista debochou da seguinte maneira: “se matança pode proporcionar a realização da meta religiosa, então a pessoa deveria preferir assumir a vida de caçador e de pescador” (Idem, 234). Os deuses Vishnu e Shiva foram hostilizados e debochados pelos autores jainistas, então versões narrativas foram criadas a fim de subestimar e até zombar dos ditos e dos atos destes deuses. Aqui, não haverá espaço para tratar de todas estas hostilidades.

O Cânone Jainista

            Em razão desta rivalidade sectária, os cânones destas duas correntes são completamente diferentes, os textos aceitos por uma corrente não são aceitos pela outra e vice-versa. Enquanto os Shwetāmbaras reconhecem 12 Agamas (Escrituras Primordiais), os Digambaras reconhecem apenas dois Agamas diferentes daqueles dos Shwetāmbaras (Jaini, 1979: 51). O único texto reconhecido por ambas as seitas é o Tattwārthasūtra, embora os Shwetāmbaras não o incluem entre os textos canônicos. Os Digambaras alegam que todo o cânone foi perdido, exceto uma pequena parte do Drshtivada, o décimo segundo Anga, que trata das doutrinas do Karma, e por isso negam que os textos preservados pelos Shwetāmbaras são os textos originais com aqueles nomes (Cort, 1993: 186). Mesmo assim, apesar das divergências canônicas, muitos pontos doutrinários e práticos são comuns entre ambas seitas. Por outro lado, às vezes, as controvérsias são problemáticas para o entendimento inicial do Jainismo, uma vez que, quando lemos os livros introdutórios, alguns autores não mencionam as fontes sectárias das doutrinas e das práticas jainistas, o que leva o leitor a pensar que os ensinamentos são compartilhados por ambas, quando, nem sempre, são comuns (para conhecer a literatura jainista, ver: Schubring, 1978: 73-125; Jaini, 1979: 47-88 e Winternitz, 1993, vol. II, 408-571). Os Digambaras ocupam predominantemente a região oeste e central da Índia, enquanto os Shwetāmbaras, o noroeste da Índia, ambas se dividem em sub seitas que, por sua vez, se dividem também em mais sub seitas (para detalhes, ver: Fohr, 2015: 20-1). Apesar destas colocações, Jerome H. Bauer não percebeu tantas diferenças e fez a seguinte observação: “as diferenças doutrinárias algumas vezes são triviais. Também, embora os Digambaras rejeitem o āgama, ou cânone completo, sobre o qual a mitologia Shwetāmbara é baseada, a mitologia Digambara é na verdade muito similar àquela dos Shwetāmbaras. Ambas, Digambaras e Shwetāmbaras aceitam a mesma História Universal, ou Cosmohistória, com algumas diferenças de detalhe que refletem diferenças de doutrinas. Este esquema básico incorpora muito da mitologia hindu, por exemplo, contos do Rāmāyana e do Mahābhārata, com alterações ajustadas de acordo com a doutrina e a tradição jainistas. Na maioria das partes, as duas seitas relatam os mesmos contos” (Bauer, 2005: 152).

            A rigor, não existe um registro autêntico do que foi pregado por Mahāvīra dois mil e quinhentos anos atrás. A literatura jainista foi preservada oralmente no idioma Ardhamāgadhī, um dialeto do Sânscrito, falado na época na região de Māgadha, leste da Índia, por muitos séculos, mas sofreu consideráveis alterações desde a época de Mahāvīra, depois gradativamente traduzida para o Sânscrito. Portanto, por ter sido preservada inicialmente na forma de transmissão oral, é difícil verificar o que exatamente foi ensinado por Mahāvīra e o que foi posteriormente acrescentado ou retirado pelos discípulos, com a intenção de explicar os ensinamentos originais. A fim de recuperar o conteúdo desta literatura, vários concílios foram realizados em diferentes ocasiões e lugares, tendo sido anotado o que os monges conseguiram lembrar da tradição, já que durante quase dez séculos os ensinamentos de Mahāvīra foram transmitidos oralmente de mestre a discípulo, com isso não se preservou o texto original. Em vista disto, muitas tradições caíram no esquecimento e interpolações foram acrescidas. Daí a razão para a controvérsia sobre o cânone, bem como sobre a biografia, os ensinamentos e as práticas, de Mahāvīra e dos primeiros discípulos, entre a duas principais seitas jainistas. 

            Quanto ao som divino e mágico emanado do Jina já mencionado, os jainistas sustentam que os sermões de Mahāvīra foram feitos na forma conhecida por दिव्यध्वनि – divyadhwani (som divino), o qual tinha um significado (artha) que foi traduzido pelos गणधराः – ganadharas (principais discípulos). No entanto, existe uma controvérsia entre as seitas quanto à natureza deste som divino. Os Digambaras imaginam que o som divino era um monossílabo, tal como o som ‘OM’, cuja compreensão só era possível pelos ganadharas (principais discípulos). Enquanto que os Shwetāmbaras sugerem que o Jina (Mahāvīra) falava em uma linguagem humana, que também era divina, no sentido que os homens de todas as regiões, os animais, podiam se beneficiarem ao ouvi-lo. Nos anos seguintes, o papel dos ganadharas (principais discípulos) não foi mais o de traduzir, mas sim o de simplesmente compilar e organizar as palavras de Mahāvīra em um corpo de ensinamentos sistemático e compreensível (Jaini, 1979: 42-3).

            Um dos dogmas mais curiosos dos jainistas, sobre a doutrina do Karma, o qual o diferencia dos outros nas tradições indianas, é a crença de que o Karma é matéria (pudgala), ao invés de algo metafísico ou psicológico, por isso falam de uma “matéria cármica”, a qual é absorvida pela alma impura. Então, a matéria (pudgala) é capaz de se transformar em Karma. Para eles, a matéria cármica se encontra flutuando livre em todas as partes do espaço, então a alma impura absorve esta matéria cármica, tal como as “partículas de poeira se prendem ao corpo untado com óleo”. Esta matéria cármica adere à alma devido às falsas noções relativas à sua própria natureza, à falta de autocontrole, ao descuido, às paixões e a outras atividades impuras.

O suicídio coletivo em Jonestown, Guiana, dos seguidores do pregador Jim Jones, em novembro de 1978, o maior conhecido na história com mais de 900 mortes.

Enfim, para um laico evolucionista, o primitivo rigorismo ascético dos ascetas jainistas parece um desperdício de vida. Quando conhecemos a até então unicidade da vida inteligente do homem no universo e os bilhões de anos necessários de evolução para o surgimento da humanidade, bem como os milhões de anos depois para o desenvolvimento do cérebro, é chocante conhecer ascetas que desperdiçam os milhões de anos de evolução humana em uma só vida, ao invés de aproveitar as funções e as habilidades acumuladas neste longo processo evolutivo.  Os milhões de anos necessários para o desenvolvimento da inteligência, da criatividade, do planejamento, do raciocínio, da linguagem, do juízo de valores, das habilidades artísticas, etc., são desperdiçados em poucos anos, é algo como entender que a evolução fracassou. A alegação dos religiosos é a de que o desenvolvimento destas funções e destas habilidades não é o máximo, existem objetivos que estão além, enfim, é preciso ultrapassar o nível humano e se tornar divino.

O Poder Coagente dos Votos 

            O Jainismo parece ser a religião com o maior número de votos (व्रतानि – vratāni) no mundo, é a religião dos votos, existem votos para quase tudo (ver: Chaugule, 2004: 19-28). Não só nos impressiona pelo número de votos, mas também pelo rigor no cumprimento dos mesmos, o descumprimento de um voto ou de muitos votos é uma falta gravíssima, cujo infrator poderá até ter o direito ao suicídio. Com tanta importância depositada nos votos, a coação para o cumprimento dos mesmos é algo temível, a cobrança chega a ser coercitiva. A submissão aos votos é tão impositiva que, para o jainista, quase todas as práticas são alcançadas graças ao cumprimento dos votos. O fracasso está no descumprimento. Quase todas as práticas são precedidas de votos, ou são executadas para o cumprimento de votos. A ênfase é tão acentuada que o jainista desenvolve uma cultura de temor pelo descumprimento dos votos, o que resulta em uma coação. E de todos os votos, o por excelência é o voto de Sallekhanā: “o auge de todos os votos na vida de um chefe de família jainista” (Chaugule, 2004: 36). Assumir o voto de Sallekhanā é um orgulho para muitos jainistas, quer homens ou mulheres. O cumprimento dos votos é tão sagrado, que uma das justificativas para a aceitação no ritual da Sallekhanā é a de que se o idoso, ou o lesionado ou o enfermo terminal não é mais capaz de cumprir os votos, então a entrada no processo de jejum religioso até a morte (Sallekhanā) é autorizada. 

Tipos de Mortes no Jainismo

            A divisão mais ampla é aquela que divide os tipos de mortes em:  अकाल – akāla (inoportuna ou prematura) e स्वकाल – swakāla (oportuna ou madura). Para os jainistas, a morte pode e, em algumas circunstâncias, deve ser antecipada através do próprio esforço, esta prática, quando oportuna, não representa violação dos votos ou o cometimento de um crime.

            O conceito de morte para os jainistas é peculiar, eles consideram que existem muitos tipos de mortes (मरणानि – maranāni). Alguns textos falam em 17 tipos de mortes (Chaugule, 2004: 293) ou até de 48 tipos de mortes (Settar, 1990: 13-4). Para eles, “a perda da vida (jīva) ou do corpo (sharīra), por si não completaria o processo da morte” (Settar, 1990: 13). O processo da morte só é completado com a total destruição do āyukarma (o karma que determina a duração da vida de um indivíduo, brevidade ou longevidade), portanto, antes desta destruição final, a qual acontece com a eliminação total dos karmas acumulados na alma (jīva) através da auto purificação, o indivíduo ainda não está completamente morto. Consequentemente, no ritual de jejum até a morte (Sallekhanā), no entendimento dos jainistas, não existe morte definitiva, uma vez que aquele ou aquela que está praticando não está buscando a morte completa, pois ainda resta o āyukarma (longevidade que determina o karma), então, mesmo depois da alma se separar do corpo, o indivíduo ainda estará vivo, no sentido metafísico.  Portanto, para os jainistas, a morte acontece a cada momento em que envelhecemos, é a perda de cada momento do tempo que leva-nos para mais próximos da morte física, então a vida é um processo gradual de morrer conhecido por avīchi-marana ou por nitya-marana, significando, morte perpétua (Settar, 1990: 14 e Chaugule, 2004: 293-4).

            Alguns destes tipos de mortes são os seguintes:

            Bāla Marana é a morte do ignorante , é o processo tolo de enfrentar a morte. Bāla, como adjetivo, significa infantil, imaturo ou tolo. Consiste de cinco subdivisões:

  1. Avyakta-bāla-marana: a morte de crianças, e tais crianças não são capazes de compreender a morte.
  2. Vyavahāra-bāla-marana: é a morte daqueles que são quer completamente ignorantes ou possuem nada mais do que um conhecimento infantil sobre o universo, as escrituras e a religião.
  3. Jnāna-bāla-marana: é a morte daqueles que são incapazes de compreender o correto significado dos códigos morais e também são incapazes de compreender as suas plenas implicações.
  4. Darshana-bāla-marana: é a morte daqueles que têm formado uma noção errada sobre a fé. Ou seja, aqueles indivíduos que colocam fim as suas vidas voluntariamente através do fogo, da fumaça, do veneno, da água, da forca, de uma corda, ou através do sufocamento, ou à exposição ao frio ou ao calor extremos, à fome, à sede, ou ainda mesmo pulando do topo de uma montanha, bem como à exposição do corpo aos abutres. Estas são mortes que acontecem sob o forte impacto das emoções, por isso os jainistas as consideram como mortes por suicídio. Já a Sallekhanā é uma forma gradual de apressar a morte, através do jejum, sem o impacto de forte emoção, ao contrário, deve ser feita mediante plena serenidade emocional, sem a utilização de arma, de veneno, ou através de enforcamento, de afogamento ou de sufocamento, de precipitação desde algum local alto ou em uma fogueira, etc.
  5. Chāritra-bāla-marana: é a morte daqueles que conduzem suas vidas sem praticar a Chāritra, comportamento espiritual (Settar, 1990: 15-6 e Chaugule, 2004: 295-7).

Em suma, para os jainistas, as maneiras pelas quais morrem quase toda a população mundial, bem como as diferentes formas de suicídios são todas conjuntamente uma maneira tola (bāla) de morrer. Ou seja, quase todos no mundo morrem de maneira idiota, entretanto, somente os jainistas, que assumem o rito Sallekhanā, morrem de maneira sábia (pandita), pois a forma inteligente de morrer é a seguinte.

Pandita Marana é a morte do iluminado, com base no Correto Conhecimento (सम्यग्ज्ञान – samyagjnāna). Nesta, o iluminado (Pandita) renuncia ao corpo através da alma, enquanto na Bāla Maranda (Morte Ignorante), o ignorante renuncia à alma em favor do corpo. O Pandita (sábio) não demora muito tempo para reconhecer a futilidade de prolongar a sua vida quando as faculdades físicas falham, quer porque ele é atormentado por doenças ou por outros fatores; a consciência de tais fatores aumenta a sua ânsia em encarar a morte através da intensificação gradual do jejum. Aqueles que não são iluminados podem considerar esta maneira de morrer como inoportuna e prematura, mas, na realidade, ela é uma morte prematuramente madura (Settar, 1990: 16). A Pandita Marana é também conhecida, entre os jainista, como a morte sublime. Existe uma extensa e rigorosa preparação ritual para esta forma de morte (Sallekhanā), tal como veremos mais adiante.

            Dentre os tipos de mortes, interessará aqui apenas o tipo de morte relacionado com a Sallekhanā, isto é: a पण्डित मरण – Pandita Marana (Morte Sábia).

A Pandita Marana, ou seja, a morte com sabedoria, é geralmente classificada em três seções:

  1. Bhaktapratyākhyāna
  2. Ingini e
  3. Prayopagamana

a) Bhakta (consumo de comida e bebida) – pratyākhyāna (restrição gradual), portanto “restrição gradual do consumo de comida e de bebida”, com a ajuda de si mesmo e a ajuda de outros, coloca ênfase no jejum, embora a mortificação do corpo por vários outros meios não é excluída. Para uma ideia do alto grau de mortificação, o sofrimento pode chegar ao ponto do praticante, tal como prescreve o Āchārānga Sūtra I.07.08.08-10, ser obrigado a suportar as seguintes dores:

“Sem comida, ele (o jejuante) deve se deitar e suportar as dores que o assolam. Ele não deve, por muito tempo, dar lugar aos sentimentos mundanos que o incomodam” (08).

“Quando os animais rastejantes, ou tais animais como os que vivem nas alturas (aves) ou aqui abaixo, se alimentam da sua carne e do seu sangue, ele nem deve matá-los nem coçar (a ferida)” (09).

“Embora estes animais destruam o corpo, ele não deve se mexer da sua posição. Após os Āshravas (influxos para aquisição de karmas) têm cessado, ele deve suportaras dores como se ele se contentasse com elas” (10) (Jacobi: 1994: part. I, 75-6).

A descrição deste procedimento acima é apenas um resumo muito abreviado, uma vez que esta modalidade de morte voluntária (Bhaktapratyākhyāna-marana) consiste de muitos rituais (para aprofundamento, ver: Chaugule, 2004: 40 e 70-180). 

b) Ingini Marana é a morte pelo sábio e pelo monge instruído que depende apenas da sua própria ajuda, ou seja, não conta com a ajuda de outros no ritual de morte. É considerada uma forma de morte mais exaltada do que a anterior, a qual conta com a ajuda de outros. O Āchārānga Sūtra I. 07.08.12-9 resume assim a experiência do jejuante neste ritual de jejum até a morte:

“Ele (o jejuante) deve abandonar todos os movimentos, exceto os seus próprios de um modo tríplice (de corpo, de fala e de mente)” (12).

“Ele não deve se sentar sobre brotos de capim, mas procurar por um chão nu, no qual ele possa se deitar. Sem qualquer conforto e comida, ele deve aí suportar a dor” (13).

“Quando os seus membros se enfraquecem, ele deve buscar a calma. Pois, ele é inocente, que está bem fixo e inabalável (em sua intenção de morrer) (14).

“Ele deve se mover para frente e para trás (sobre o chão), contrair e esticar (seus membros) para o benefício do corpo todo, ou (ele deveria permanecer quieto como se ele estivesse) morto” (15).

“Ele deve caminhar, quando cansado de ficar deitado, ou ficar em pé com os membros imóveis; quando cansado de ficar em pé, ele deve se sentar” (16).

“Determinado por alcançar tal morte incomum, ele deve regular os movimentos dos órgãos. Ao atingir um local infestado de insetos, ele deve buscar um local limpo” (17).

“Ele não deve permanecer onde o pecado aconteceria. Ele deve se erguer acima do pecado e suportar todas as dores.” (18).

“Este é um método ainda mais difícil, quando alguém vive de acordo com ele, não se mexer do seu lugar enquanto checa todos os movimentos do corpo” (19) (Jacobi, 1994: part I, 76-7 e para aprofundamento, ver Chaugule, 2004: 180-8).

c) Prayopagamana Marana, está é a forma de ritual mais difícil, a qual precisa ser enfrentada com superpoder, pois é necessário recusar não só a ajuda dos outros, mas também a sua própria ajuda. Nesta modalidade de jejum até a morte, o jejuante não poderá se deitar em uma cama, não realizará movimentos tantos externos como internos e terá de assumir uma atitude de indiferença para com o seu próprio corpo. O jejuante não moverá nem sequer os seus intestinos, assim restringindo todos os movimentos do corpo, tantos os externos como os internos. Veja as regras e a descrição do sofrimento do jejuante em Āchārānga Sūtra I.07.08.21-5:

“Alcançado um local livre de seres vivos, ele (o jejuante) deve se fixar aí. Ele deve mortificar a sua carne completamente, pensando: não existem obstáculos no meu corpo” (21).

“Sabendo dos perigos e problemas durante a sua vida, o sábio e controlado asceta deve suportá-los como sendo úteis para a dissolução do corpo” (22).

“Ele não deve se apegar aos prazeres transitórios, nem aos maiores prazeres, ele não deve alimentar desejo e cobiça, buscando sempre o louvor eterno” (23).

“Ele deve ser iluminado com objetos eternos, e não confiar no poder ilusório dos deuses, um brâmane deve conhecer isto e descartar toda inferioridade” (24).

Indiferente à qualquer dos objetos externos, ele alcança o fim da sua vida, pensando que a paciência é o bem maior, ele deve escolher um dos três bons métodos descritos acima de entrar no Nirvāna” (25) (Jacobi, 1994: part. I, 77-8 e para aprofundamento, ver: Chaugule, 2004: 188-91).

Concluindo, para os jainistas partidários desta maneira excepcional de morrer, quase todos morrem de uma maneira idiota (bāla), só o jejuante que assumiu o voto de Sallekhanā realiza a maneira sábia (pandita) de morrer, ou seja, consequentemente quase toda a humanidade morre de uma maneira ignorante, uma vez que o número de seguidores do Jainismo é pequeno, bem como nem todos os jainistas escolhem o voto de Sallekhanā no final de suas vidas; enquanto que, para os jainistas, somente os praticantes da Sallekhanā morrem de uma maneira inteligente, embora os jainistas reconheçam a existência de maneiras intermediárias entre as mortes ignorante (bāla) e sábia (pandita): Bāla Bāla Marana, Pandita Bāla Marana, Bāla Marana,  Bāla Pandita Marana, Pandita Marana e Pandita Pandita Marana (ver Settar, 1990: 10-1; 13-22 e para aprofundamento: Chaugule, 2004: 70-191 e 293-303).  

O Significado de Sallekhanā

            Termo com significados diversificados, etimologicamente os sentidos mais comuns não coincidem com o significado que os jainistas atribuem à palavra (ver: Jaini; 1979: Settar, 1990: 177; Dundas, 2004: 179; Wiley, 2006: 181; Apte, 1978: 819; spokensanskrit.org e wisdomlib.org). सल्लॆखना – Sallekhanā é uma palavra composta sânscrita formada do adjetivo सत्–sat (digno) e do substantivo लॆखनः – lekhanah[11] (escrita, lápis, caneta, corte cirúrgico, escritura, pincel, remoção e raspagem, esta última para remoção de tumor, de úlcera, de tártaro, um termo utilizado na medicina indiana), derivada da raiz verbal लिख् – likh (escrever, delinear, traçar, raspar, remover). Entretanto, os significados mais comuns são: “escrever”, “traçar uma linha”, “esculpir”, “esboçar”, “delinear”. Então, Sallekhanā significa, na interpretação dos jainistas, a remoção (lekhana) digna (sat – correta) dos karmas que se acumulam na alma, através do processo de definhamento do corpo (pelo jejum até a morte), a fim de salvar a alma, quando a morte se aproxima. A língua páli também possui a palavra Lekhana no sentido de raspagem (Rhys-Davids, 1997: 586 e wisdomlib.org). Este foi o significado mais próximo àquele atribuído pelos jainistas, o qual foi possível encontrar nos dicionários e nos glossários.

            Trata-se do voto de jejum até a morte, ou seja, é a morte religiosa através do jejum, feito por um ou uma chefe de família, ou por um monge ou por uma monja, através de um lento processo de diminuição gradual do consumo de alimentos e de líquidos até o definhamento do corpo, a fim de alcançar a melhor preparação para a próxima vida ou o estado de Liberação (Moksha), sem o transporte para a próxima vida da poluição dos karmas acumulados no passado e nos últimos momentos. Os jainistas acreditam convictamente que os últimos pensamentos e os últimos comportamentos na vida de uma pessoa são determinantes para a configuração do karma na próxima encarnação, então a necessidade de morrer com o menor acúmulo de karma possível, ou até mesmo alcançar a Libertação naquela vida. Ou seja, o estado mental de uma pessoa nos momentos que antecedem a morte afetam, positivamente e negativamente, o destino daquela pessoa na próxima vida (Jain, 2016: 202). Então, é melhor morrer em um estado de mente tranquila com o mínimo de agitações das paixões e dos temores. “Os últimos momentos da vida de uma pessoa é de extrema importância para se determinar a condição da sua próxima encarnação. Por exemplo, os hindus acreditam que uma pessoa renasce em um estado que reflete o seu mais forte apego no momento da morte” (Jaini, 1979: 227). Por isso, enfrentar os últimos anos da vida com as faculdades mentais debilitadas (caduquice) é extremamente prejudicial na configuração da próxima vida Então, “morrendo em meditação, ele (o jejuante) é capaz de escolher as circunstâncias precisas do seu fim. A questão é encontrar a morte com todas as faculdades funcionando apropriadamente, em um estado de completa consciência e liberdade das infrações dos votos. Se, por exemplo, uma pessoa deixa de praticar os seus votos devido ao início de enfermidade ou de senilidade, ela passará as suas horas finais em asamyama (auto descontrole); tal circunstância infeliz, se acredita, afetará adversamente seu próximo nascimento” (Jaini, 1979: 227-8). Assim, o jainista (chefe de família ou monge/monja) é autorizado a antecipar a sua morte através da maneira sagrada conhecida por सल्लेखना – Sallekhanā.

O asceta jainista da seita Dighambara deve viver nu.

            Sallekhanā é justificada pelos jainistas como diferente de suicídio (Tukol, 1976 e Jain, 2016: 192). Ela é empreendida somente quando o corpo não é mais capaz de servir o seu dono como um instrumento do dharma, e quando a inevitabilidade da morte é uma questão de certeza. Então, o ritual purificatório de Sallekhanā é iniciado a fim de fortalecer a alma e evitar o seu nascimento futuro em circunstâncias desfavoráveis. Portanto é recomendado como “um ritual ideal de deixar o corpo” (Chaugule, 2004: 36).   

            A definição de Sallekhanā mais mencionada é aquela extraída do texto Ratnakarandaka-shrāvakāchāra (o Porta-joias da Conduta do Chefe de Família), do segundo século e.c., de autoria de Āchārya Samantabhadra, verso 122:

“O abandono do corpo de uma maneira que preserve a virtude (dharma) durante a ocorrência de uma calamidade (upasarga), de uma escassez de comida (durbhiksha), da velhice (jarā) ou da doença (rujā), das quais não há saída, é chamado o voto de morte voluntária e desapaixonada (Sallekhanā) pelos mais eruditos sábios” (Jain, 1917: 58 e Jain, 2016: 191, ver também: Tukol, 1976: 07 e 107 e Chaugule, 2004: 39-42)

            P. S. Jaini explicou assim cada uma destas condições: “Os livros jainistas relacionam quatro situações cuja Sallekhanā pode ser executada:

1.उपसर्ग – Upasarga: uma calamidade inevitável, por exemplo, a captura pelo inimigo, o que faz a prática dos votos impossível.

2.दुर्भिक्षा – Durbhikshā: uma grande escassez de comida, durante a qual não é possível obter alimento.

3.जरा – Jarā: velhice, definida pelo começo de tais problemas como cegueira, incapacidade de andar sem ajuda, caduquice e qualquer outro obstáculo para praticar os votos e

4.रुजा – Rujā: doença terminal cuja morte é iminente” (Jaini, 1979: 229).

A Sallekhanā Conforme os Jainistas

              As origens do Jainismo estão envoltas nas névoas da mitologia. A figura histórica mais determinável é o último Tirthankara, Mahāvira (Grande Herói), o 24º Tirthankara. Ele foi um contemporâneo mais velho de Buda, há cerca de 2500 anos. De acordo com a tradição, Mahāvira viveu de 599 a 527 a.e.c. Ambos viveram e ensinaram na mesma região, mas não existe registro de que eles se encontraram. Suas doutrinas se afastaram da tradição bramânica, ambos não aceitaram os Vedas, pois rejeitaram os sacrifícios sangrentos dos Vedas que violavam o princípio chave da Ahimsa (não-violência).

            A ética do suicídio é vista de maneiras diferentes nas tradições hindu, budista e jainista, embora estas tradições se originaram de algumas das mesmas raízes e apesar de que as diferenças possam ser mais de ênfase do que de opinião normativa. Os hindus, especialmente os legisladores brâmanes, geralmente, sustentaram que o suicídio não é permitido, exceto como uma punição para um crime grave, ou como uma escolha para colocar fim a sua vida (raramente documentada), ou quando uma figura de grande espiritualidade caminha em direção aos Himalayas na “Grande Partida”, a jornada que termina com a morte. Os budistas permitem o suicídio em casos excepcionais, usualmente em casos de auto sacrifício para aliviar o sofrimento de outro, em casos de auto respeito, mas em geral, eles sustentam que um indivíduo deve esperar e suportar o sofrimento sem buscar escapar dele através da morte. Já os jainistas permitem e, até mesmo, reverenciam a Sallekhanā (prática do jejum até a morte) como a culminação da vida atual de um indivíduo e da transição da alma para a próxima vida.

            A Sallekhanā, também denominada de Santhara ou Santharo na corrente Shwetambara da tradição jainista, algumas vezes chamada de “morte espiritual através do jejum”, é a austeridade central que forma a conclusão ideal da vida de estágios progressivos de ascetismo e de retirada das necessidades da vida rotineira. O Ratnakarandaka-shrāvakāchāra, verso 123, menciona que o próprio Mahāvira, prescreveu a Sallekhanā como a culminação das práticas de austeridade da vida do jainista: “Visto que o Senhor Onisciente (Mahāvira) chamou a Sallekhanā de o fruto final ou culminação da penitência (austeridade religiosa), a pessoa deve se esforçar para praticar o voto de Sallekhanā com a maior habilidade possível, no momento da aproximação da morte” (Jain, 2016: 202). Os jainistas são insistentes de que Sallekhanā não é suicídio, embora seja o crente quem conscientemente e voluntariamente assume os passos que conduzem a sua morte, isto não é considerado uma autodestruição. Melhor dizendo, a morte neste caso fornece uma medida de controle de transição de uma vida para a próxima, reconhecendo, tal como todas as religiões indianas, que os últimos momento da vida de uma pessoa são de extrema importância para determinar a condição da próxima encarnação. Ela é “definhar o corpo para salvar a alma”.

            Na crença jainista, existem certas condições nas quais a Sallekhanā pode ser executada, essencialmente aquela na qual os votos religiosos do indivíduo não são comprometidos. Mais comumente, os jainistas pedem permissão para executar a Sallekhanā no caso de doença terminal ou quando a morte é eminente. Outras circunstâncias são permissíveis para os monges e as monjas, isto é, a fim de evitar uma catástrofe que resultaria comprometer a prática dos seus votos e a renúncia total, tais como cegueira, inabilidade de caminhar e de coletar esmola, ou no caso de uma calamidade inevitável, tal como uma escassez severa de alimentos. Se diz que os pais de Mahāvira, que eram seguidores do 23º Tirthankara, Parshwanatha, executaram a Sallekhanā no fim de suas vidas.

            A Sallekhanā não deve ser confundida com o suicídio em qualquer caso, ela deve ser executada sem esforço, sem paixão, sem excitação ou tumulto emocional de qualquer natureza. Ela deve observar os princípios éticos centrais do Jainismo, não-violência e evitar a contaminação espiritual. Sallekhanā é vista como uma morte sábia e sagrada para a qual alguém deve se preparar por sua vida inteira. Em contraste, o suicídio, o qual na opinião jainista surge da ignorância, do desespero, da impropriedade, do rancor, da agonia e assim por diante, e que causa violência ao corpo através de métodos tais como venenos ou armas, enforcamento ou precipitação de um precipício, é a “morte do tolo” (Jain, 2016: 192; para aprofundamento, consultar: Tukol, 1976: 85-97 e Chaugule, 2004: 209-21).

              No pensamento jainista, uma morte impura por suicídio envolve um aumento nas paixões, já uma morte pura, por outro lado, tal como na Sallekhanā, não envolve aumento de paixão. Esta é uma importante distinção para o pensamento jainista; as paixões são vistas como uma causa direta do influxo de impurezas kármicas para a alma e elas resultam em renascimento em um nível inferior, enquanto um estado desapaixonado da mente conduz para ambos, a cessação do acúmulo de karma e a destruição do karma existente, que está apegado à alma do indivíduo. Assim, na crença jainista, ao libertar-se das paixões, o indivíduo libera a sua alma. Também, a Sallekhanā deve ser vista como a suprema expressão da doutrina jainista da Ahimsa (não-violência), uma vez que, cessando de comer, o indivíduo impede a destruição intencional ou involuntária de todos os seres vivos.

            Na Sallekhanā, o praticante gradualmente reduz o consumo de comida e de líquidos de maneira que o corpo é “purificado” de seus elementos negativos; assim a mente pode se focalizar exclusivamente nos assuntos espirituais sem perturbar a paz interna. A Sallekhanā deve ser executada com uma fórmula sagrada nos lábios do praticante, e somente com a aprovação do conselheiro espiritual. Ela é uma morte planejada, voluntária e pacífica, a qual deve ser executada com plena alegria e calma.

            Um aspirante pode assumir um voto para executar a Sallekhanā bem antecipadamente, mas quando este momento chegar, ele deve buscar a permissão do mestre ou do mentor para executar o ritual, então ocupa-se na confissão, na auto censura, e no ritual de perdoar e pedir perdão, e então começa um curso de jejum. A permissão para executar a Sallekhanā não é concedido facilmente, parte do papel do mestre é determinar se o pretendente tem de fato atingido o grau de disciplina e de desenvolvimento espiritual exigido para esta austera prática. A morte deve ocorrer enquanto se está plenamente consciente, em um estado de completa vigilância, durante a meditação. Isto significa que a aceitação do voto da Sallekhanā, no fim da vida, não deve ser uma decisão repentina e espontânea, mas deve, com efeito, ser o ponto culminante de uma série de austeridades já experimentadas e dominadas pelo jejuante. Este processo é aproximadamente comparado ao período de treinamento que um guerreiro executa a fim de se tornar um combatente bem sucedido no futuro.

            Embora a Sallekhanā possa ter sido originalmente uma prática para os ascetas, ela gradualmente se estendeu para o leigo, e então centenas de inscrições pela Índia toda registram a prática da Sallekhanā por jainistas homens e mulheres, incluindo casais de marido e mulher.

            Um tanto em comum com as práticas médicas ocidentais envolvendo a cessação de consuma de comida e de bebida como uma alternativa para o suicídio medicamente assistido e a eutanásia ativa, a Sallekhanā é também praticada por alguns jainistas contemporâneos na extrema velhice ou com doença terminal. Recentes desafios legais na Índia atual têm levantado a questão de que se “jejum até a morte” é constitucionalmente protegido como uma prática religiosa, ou, por outro lado, é inconstitucionalmente um “mal social” análogo à ilegítima prática hindu do sacrifício de Satī, proibida em todo o território indiano conforme Lei Federal. Os oponentes da Sallekhanā a chamam de “assassinato à sangue frio”, já os apoiadores dizem que os jainistas que a praticam o “fazem conscientemente a fim de atingir a iluminação” e que ela é uma “conquista religiosa”, eles enfatizam que ela não deve ser definida como “suicídio” (Tukol, 1976: 85-97; Chaugule, 2004: 209-21 e Jain, 2016: 192).

Os Números Recentes

Diversas centenas de jainistas, especialmente no estado do Rajastão, executam o ritual de Sallekhanā todo ano, esta parece ser a área com a maior ocorrência de mortes voluntárias na Índia. D. S. Baya, no período de janeiro de 1994 até dezembro de 2003, levantou 2400 casos de mortes voluntárias nas revistas e nos jornais indianos, para a sua tese de PhD. Entretanto, devido à falta de dados nestes periódicos, somente 350 casos puderam entrar na sua pesquisa, pois muitos faltavam a menção da idade do praticante, o período de penitência de preparação, o tempo de jejum até a morte, o nome do monge supervisor, etc., na maioria dos casos, apenas menciona que tais e tais pessoas morreram através da morte pacífica (samādhimarana), sem especificar mais detalhes (Baya, 2015).

Portanto, se levarmos em conta o número total, neste período de dez anos, ocorreram aproximadamente 2400 mortes voluntárias, o que representa uma média de 240 mortes por ano e uma média de 20 por mês.  Entretanto, apenas 350 casos, com dados completos, foram incluídos na pesquisa de D. S. Baya. Deste número, 90 mortes (26%) foram cometidas por praticantes da seita Digambara e 260 mortes (74%) por praticantes da seita Shwetambara, sendo:

Monges: 36 mortes (57,4%) na seita Digambara e 27 mortes (42,6%) na seita Shwetambara

Monjas: 36 mortes (57,4%) Digambara e 27 mortes (42,6%) Shwetambara

Leigos: 10 (8,5%) Digambara e 98 (91,5%) Shwetambara

Leigas: 5 (4%) Digambara e 120 (96%) Shwetambara

            As idades com mais ocorrências são as entre 81-90 anos (38,9%) e na área urbana acontece a maioria das ocorrências (62,9%), na área rural apenas 37,1%). Os números e porcentagens dos motivos para assumir o voto de morte voluntária foram os seguintes:

Acidente ou emergência: 13 (3,6%) e velhice/doença incurável: 337 (96,4%).

            Portanto, atualmente quase a totalidade das mortes em rituais de Sallekhanā acontece em razão de velhice e de doença incurável. Entretanto, Whitny Braun, quem realizou uma pesquisa de campo sobre Sallekhanā na Índia, observou que “é difícil analisar as verdadeiras intenções dos indivíduos ao assumir o voto de Sallekhanā”. Pois existem causas sociais subjacentes na decisão de assumir o ritual de Sallekhanā, as quais  podem ser “motivadas por pressão da família por razões que vão desde a dificuldade econômica, associada com o cuidado com um parente idoso, até o desejo de um indivíduo de se redimir das culpas que ele trouxe para a família no passado” ou até mesmo que “alguns têm argumentado que, deste modo, Sallekhanā serve como um meio de coagir viúvas e parentes idosos em tirarem as suas próprias vidas e com isso eliminarem o peso para a família” (Braun, 2008: 87).   

A Batalha Judicial

            Por quase dois mil anos, a questão do rito do jejum até a morte, praticado pelos jainistas, não era alvo de controvérsias, portanto um assunto inquestionável. Entretanto, com a colonização da Índia pelos britânicos, a qual a colocou em contato com a cultura contemporânea e a cultura ocidental, a polémica entre o direito à vida e a liberdade de religião veio à tona. Em um país tão religioso e com milhões de falantes de uma língua ocidental, o inglês, não é surpresa que tal assunto um dia se tornaria uma polêmica. Em meio a tantas polêmicas religiosas, em 2015, a Alta Corte do Rajastão[12] aceitou a alegação da acusação e proibiu a prática da Sallekhanā, considerando-a como suicídio. A alegação foi a de que a Constituição Indiana não permite, nem inclui no artigo 21, o direito de tirar a própria vida, tampouco inclui o direito de tirar a vida como uma prática religiosa essencial (artigo 25 da Constituição Indiana). Ela também acrescentou que não está provado que a Sallekhanā é uma prática essencial do Jainismo e, portanto, não está coberta pelo artigo 25 da Constituição. Assim, então, a Alta Corte proibiu a prática em agosto de 2015, crime punível mediante a seção 306 (cumplicidade de suicídio) e 309 (tentativa de cometer suicídio). Os membros das comunidades jainista organizaram marchas de protestos por toda a Índia.

            Defensores da Sallekhanā recorreram da decisão da Alta Corte do Rajastão e, então, em 31 de agosto de 2015, a Suprema Corte da Índia aceitou a apelação dos jainistas e concedeu a licença para a prática da Sallekhanā. Ela manteve em parte a decisão da Alta Corte do Rajastão, mas suspendeu a proibição da prática, com isso a prática da Sallekhanā voltou a ser permitida em todo o território indiano. Em abril de 2017, o Parlamento Indiano descriminalizou o suicídio, aprovando o Decreto de Saúde Mental.

            O ritual de Sallekhanā está permitido na Índia, mas o Sacrifício de Satī, aquele cuja viúva se atira na pira funerária do marido recém falecido, a fim de se juntar a ele no outro mundo, continua proibido. Esta é outra prática religiosas que, para muitos, é também uma forma de suicídio. A alegação dos jainistas é a de que no Sacrifício de Satī existe forte emoção e violência, bem como ele é o resultado de uma tragédia, isto é, a morte do marido, enquanto a Sallekhanā é praticada sem o motivo da forte emoção, com a mente serena, de maneira gradativa e sem violência, portanto não é suicídio, mas sim uma preparação religiosa para a morte. Por isso, a Sallekhanā é, às vezes, traduzida por “morte voluntária e desapaixonada” (Jain, 2016: 191). Outra tradução é “um ritual ideal de deixar o corpo” (Chaugule, 2004: 36). Ela é a preparação para a morte com equilíbrio mental, através da gradual purificação da mente, da eliminação das paixões e do cativeiro kármico, bem como o definhamento do corpo através da dieta controlada e do jejum. 

A Tortura Psicológica

            No ritual da Sallekhanā, o jejuante é denominado de क्षपक – Kshapaka (literalmentte: jejuante, abstinente), substantivo derivado da raiz verbal क्षप् (kshap), que significa: jejuar, abster (Apte, 1978: 384) e o seu conselheiro instrutor de निर्यापकाचार्य – Niryāpakāchārya, termo talvez derivado de निर्याणं – niryānam (morte), portanto “instrutor do processo de morte”. Uma tarefa inicial do Niryāpakāchārya (instrutor) é a de preparar psicologicamente o Kshapaka (jejuante), melhor dizendo, induzi-lo através de um discurso repugnante, sobre os horrores e os sofrimentos, pelos quais o jejuante passou, em suas vidas anteriores nos estágios (gatis) de Deva Gati (Estágio Divino), Manushya Gati (Estágio Humano), Tiryancha Gati (Estágio Animal) e Naraka Gati (Estágio Infernal). O instrutor, através de uma pregação abominadora, relata em detalhes as dores sofridas pelo jejuante durante a sua passagem pelo estágio de Tiryancha (animal), tais como o chicoteamento amarrado a uma corda, assustado, carregado com pesos muito pesados, obrigado a perambular de cá para lá, ferido por ferro quente, oprimido, queimado, ensanguentado, adoentado, ferido, oprimido por fome e sede, comido por outros, obrigado a nadar na sujeira, sofrimento de severo calor e frio, castrado, perfurado e cortado por armas afiadas.

Pilotos suicidas Kamikazes na Segunda Guerra Mundial

            Depois de relatar estes sofrimentos, o instrutor infunde abominação na mente do jejuante recordando os sofrimentos na sua vida no estágio humano (Manushya), quando ele também teve de suportar muitas dores e misérias. Ele teve de suportar a separação de seus entes queridos, teve de conviver com pessoas indesejáveis, bem como com inimigos, ele teve de sofrer a falta de suprimentos que ele desejava, teve de ouvir as amargas e sujas linguagens, as refutações e as palavras insultantes das autoridades. Mesmo como ser humano, ele foi oprimido, desamparado, sofreu aversão, foi importunado por preocupações, odiou e teve de lamentar pelo seu próprio infortúnio. O Niryākapakāchārya (Instrutor) então pede ao Jejuante (Kshapaka) para se recordar de todas aquelas torturas psicológicas e físicas, dores causadas pelo fogo, pelo veneno, pelos atos dos inimigos, pelas mordidas de serpentes, ataques de leões, por armas afiadas, pelo frio e pelo calor severos, fome e sede (Chaugule, 2004: 47-9).

O Repúdio pelo Corpo

            Durante o ritual da Sallekhanā, as austeridades visam subjugar os estímulos externos do corpo através de um processo de autoflagelação. O alvo da austeridade é a subjugação das emoções, a arma de ataque é o jejum. As austeridades externas são descritas minuciosamente em termos de uma variedade de restrições impostas no consumo de alimentos: consumindo menos do que é necessário, aceitação condicional da comida, rejeição de qualquer um ou de todos os nutrientes. Enquanto estiver praticando isto, o jejuante deve escolher viver, dormir e meditar em locais isolados, e também cultivar a arte da mortificação do corpo, sem permitir que a força de vontade enfraqueça. Este processo de flagelo do corpo, a fim de obter controle sobre as emoções e as paixões, é chamado de dravya-sallekhanā.

            Em um estágio do ritual Sallekhanā, o Assistente Instrutor (नर्यापकाचार्य – Niryāpakāchārya) reforça veementemente na mente do jejuante (क्षपक – Kshapaka) a importância de manter o repúdio ao corpo, a fim de evitar a tentação da mente do jejuante pelos prazeres corporais, e com isso o obstáculo de cumprir os votos (व्रतानि – vratāni). Durante esta instigação, o Niryāpakāchārya (Instrutor) retrata a longa cadeia do desenvolvimento imundo do corpo, desde a concepção, passando pelo nascimento, o desenvolvimento até o envelhecimento do corpo. Ele conduz o Kshapaka (Jejuante) a se recordar da semente do corpo (concepção), da formação dos membros, da localização do feto, da maneira pela qual o feto consegue seu alimento, do nascimento e também do desenvolvimento pós-natal do corpo, da imundice proveniente do ouvido, do nariz, etc., da sujeira dos membros, as doenças, etc. Tudo isto é feito para fazer o Kshapaka observar o celibato e não cair em tentação (Chaugule, 2004: 49-50).

            Ele persuade o Kshapaka de como a feiura do corpo começa com a semente, que é zigoto, formada de células do óvulo e do esperma. O local do feto é no útero, que é um lugar sujo. Os ouvidos, os olhos o nariz são constante fontes de repetidas imundices. Biles, catarro e vômito são imundices que estão constantemente sendo criadas sobre a língua e sobre os dentes. A saliva na boca, a urina, as fezes e o sêmen são todos coisas abomináveis. Também, a transpiração do corpo, seu odor e como os piolhos são criados a partir dela. Mesmo depois de tomar banho, de aplicar incenso, de lavar e de escovar os dentes, de limpar os olhos, o corpo ainda emite odor sujo. O corpo é uma caixa de coisas imundas, uma fonte de doenças (Chaudule, 2004: 50-1). Este procedimento é utilizado em razão da ideia de que apenas a vontade do Kshapaka não é suficiente para criar a aversão necessária ao corpo e ao prazeres corporais, portanto a necessidade de uma estimulação depreciativa do corpo pelo Instrutor Assistente – Niryāpakāchārya.

            Esta severa crítica do corpo é feita para proteger o Kshapaka (Jejuante) da tentação do tão influente encanto da beleza, e salvá-lo de voltar para a vida pecaminosa. O Instrutor (Niryāpakāchārya) orienta o Kshapaka através da pregação, o qual parece mais um discurso de horror, para proteger sua mente e mantê-lo no caminho correto. Esta exortação do instrutor pela abominação é vista como de grande importância para que seja criada a aversão ao corpo e aos prazeres corporais. A justificativa jainista é a de que o Eu deve triunfar sobre o corpo, o qual está sujeito à doença, que muda e sofre modificação, enquanto o Eu é eterno e imutável (Chaugule, 2004: 49-52).

A Insipidez dos Prazeres Corporais

            Depois das estimulações de repúdio acima, o discurso de horror do Instrutor continua, agora com a abominação aos prazeres corporais, persuadindo o jejuante de que os prazeres são desinteressantes e insípidos. A alegação é a de que não há essência nos prazeres mundanos, pois existe mais tristeza do que prazer na destruição dos meios de prazeres, comparado ao prazer que alguém sente com o prazer da comida deliciosa, com o prazer sexual e do uso de ornamentos luxuosos, com a tristeza que alguém sente na destruição dos meios de prazer. Se isto for assim, como poderia alguém sentir prazer no corpo que, em si, é oprimido pela fome, pela sede, pelo frio, pelo calor, pelas doenças e é também destrutível. O prazer verdadeiro, segundo esta visão de mundo, está no Eu. O prazer desfrutado pelos órgãos dos sentidos não é uma felicidade real. O Kshapaka (Jejuante) deve ser educado e convencido nesta doutrina da insipidez dos prazeres corporais (Chaugule, 2004: 52-3).

A Aversão às Mulheres

            O discurso de abominação continua, agora a vítima é a mulher. A orientação para os homens envolve a criação da aversão às mulheres. Um homem que tenta alcançar a auto realização deve considerar o desejo por uma mulher como um obstáculo, a recíproca também deve ser verdadeira. Esta aversão por mulheres deve ser criada na mente do Kshapaka (Jejuante) através da contemplação dos defeitos do prazer sexual (embora quase todos sintam o contrário), a fraqueza das mulheres (sentimento misógino), a impureza do corpo em tais atos, a sujeira do corpo sentida enquanto se serve às pessoas idosas (?) e a impureza sentida no contato com uma mulher, criam a aversão às mulheres (Chaugule, 2004: 54). Não foi possível encontrar a recíproca, ou seja, o processo de criação da aversão aos homens pelas mulheres, utilizando os mesmos argumentos e os mesmos exemplos, porém em relação aos homens.

Renúncia às Posses Materiais

            E o discurso de desmoronamento do mundo do Kshapaka (jejuante) continua com o conselho da renúncia a todos as posses materiais. Isto não significa somente as posses atuais, mas os próprios pensamentos das posses do passado (tal coisa já foi minha) e do futuro (eu terei riquezas no futuro). Não só as posses, mas o próprio pensamento de posse pode conduzir a uma variedade de pecados no outro mundo. Aparigraha (desapego) é a condição mais importante para um Kshapaka, que está se preparando para a Sallekhanā. Ele deve estar psicologicamente, fisicamente e corporalmente livre do desejo de posse (Chaugule, 2004: 54).

Exigência de Perfeição Fálica

            Dentre tantos, um requisito para que o aspirante pratique a Sallekhanā do ritual Bhaktapratyākhyāna é o de que ele tenha um लिङ्ग – Linga (órgão masculino) perfeito, uma vez que a preparação para tal ritual começa a partir do Linga Adhikāra (o Símbolo Ascético), o qual, por excelência, é a nudez, sobretudo para os monges da seita Digambara. Em outras palavras, é a qualificação (adhikāra) do aspirante para a execução de um ritual.

            Então, o aspirante deve provar que não tem defeitos em seu órgão masculino (pênis e testículos). As exigências são as de que o pênis não pode ser sem pele, não pode ser muito comprido e grosso, bem como não pode ficar excitado. Estes são os defeitos do Linga (pênis e testículos). Portanto, a nudez só é permitida quando o Linga (pênis e testículos) está livre dos defeitos acima mencionados. Ambos os símbolos do sexo masculino, isto é, o pênis e os testículos, são mencionados aqui pela palavra Linga. Também, a dependura dos testículos não deve ser muito longa, ou seja, o escroto não pode ser muito comprido. Não existe exceção para esta regra. Se não existe remédio para estes defeitos, e o aspirante precisa estar nu, então ele deve recorrer a uma alternativa, qual seja, a de assumir a nudez apenas quando alcançar a fase ritual no período em que deve permanecer deitado na cama, e não antes disto (Chaugule, 2004: 78-9). Para as mulheres, inclusive para as monjas, não é exigida a nudez.

Sallekhanā: Morte Sábia (Pandita Marana) ou Morte Ignorante (Ajnāna Marana)?

            Os textos jainistas afirmam que a morte através do jejum religioso até a morte (Sallekhanā) é a maneira sábia de morrer (Pandita Marana), uma vez que prepara o destino do aspirante para uma próxima vida melhor ou para a libertação (Moksha), então todas as outras bilhões de mortes ocorridas até hoje, sem a prática deste ritual, foram formas ignorantes de morrer. Consequentemente, só os janistas morrem sabiamente, portanto, apenas os jainistas, os quais são minoria, estão certos e o resto da população mundial, o qual é a imensa maioria, está errado.

            Em função da mentalidade habitualmente crédula dos religiosos, quase todos pensam que a maneira sábia que executar uma ação é aquela que é feita de acordo com as crenças da sua religião. Consequentemente, a ação em desacordo com as suas crenças é a ação ignorante, ou seja, a ação ortodoxa é a ação sábia, enquanto a ação herege é a ação ignorante. Assim, então, crença é identificada com sabedoria.

            Muito diferente do suicídio medicamente assistido, cuja decisão do paciente em colocar fim a sua vida é baseada em diagnóstico médico, portanto científico; por outro lado, a decisão de assumir a Sallekhanā é baseada em situação religiosa, portanto crédula, ou seja, a decisão é tomada por temor da incapacidade de cumprir os votos religiosos, os quais são sagrados no Jainismo. A primeira decisão é feita com base na cientificidade de um diagnóstico e a segunda decisão é tomada com base na credulidade de uma religiosidade.  O fato científico está na realidade, a crença religiosa está apenas na mente do crente. Então, como a decisão e a prática de um conjunto de atos de mortificação e de jejum até a morte, com base em crenças, as quais só tem vida nas mentes daqueles que acreditam, podem ser chamadas de “morte sábia”, quando não é nem sequer possível provar a realidade destas crenças? Como ter certeza ou ter um exemplo de que estas práticas de mortificações e de jejum levarão os resultados para a próxima vida? Como alguém saberá que sua sorte é resultado da prática do jejum até a morte (Sallekhanā) na vida anterior? O fato é que os jainistas confundem fé com sabedoria, morrer da maneira jainista não é morrer sabiamente, estritamente falando, é morrer credulamente, pois tudo em que o aspirante confia é crença sem comprovação da sua realidade e não fatos cientificamente confirmados. Portanto, a rigor, não é “morte sábia”, mas sim “morte ingênua”.

Um dos martírios mais conhecidos no Catolicismo é o de santa Perpétua, o martírio é uma forma de suicídio ideológico por uma causa religiosa.

            As ideias de reencarnação e de karma são crenças, e não fatos cientificamente confirmados, apesar de alguns poucos tentarem provar, através de experimentos pseudocientíficos, a sua realidade (para detalhes, ver: Botelho, 2018).

A crença de que os últimos atos de uma pessoa determinarão o destino na próxima vida, tal como acreditada no Jainismo e em outras tradições indianas, não fundamenta alguém a decidir cientificamente por uma “morte sábia”, uma vez que é uma crença sem comprovação científica, pois ainda não sabemos com certeza se existe vida após a morte do corpo. Bem como, não existe provas concretas que exista a lei do Karma. Portanto, a decisão e os procedimentos assumidos pelo jejuante, durante o ritual Sallekhanā, são baseados em fé, e não em ciência.

Também, quando alguém, na velhice ou com uma doença incurável, assume o ritual Sallekhanā, esta última prática não será, de alguma maneira, um alívio para o aspirante, pois o consolo infundido na mente do jejuante de que ele estará se preparando para uma vida melhor no futuro, não será nada mais do que um placebo religioso. O que ocorrerá, ao contrário, será um acúmulo de sofrimentos durante os últimos momentos de sua vida, ou melhor, uma duplicação, o da velhice ou da doença terminal (ou ambas) e, acrescida a estas, o sofrimento das torturas das práticas ascéticas e do sacrificante jejum do ritual Sallekhanā. Enfim, estritamente falando, o que o ritual da Sallekhanā resulta é na duplicação do sofrimento do praticante, ou seja, ela é uma complicação e não uma solução para a morte. Este duplo sofrimento é consolado pela ingênua crença de que o jejuante será recompensado com uma vida melhor na próxima vida. Não existe confirmação para este fato. Agora, imagine a crueldade que tudo isto representará para o jejuante se, depois de tanta mortificação e de tanto sofrimento, todas estas crenças e todas estas práticas não tiverem realidade. Então, imagine o tamanho da irresponsabilidade dos autores destas prescrições, bem como dos incentivadores e dos assistentes que auxiliam na execução destas práticas.

            Se o simples ato de alguém fazer uma coisa, por decisão própria, inocentasse aqueles que o persuadem e o incentivam a fazer tal ato, não haveria a necessidade da criação de leis para o inibição da propaganda enganosa e para a defesa do consumidor. Pois, conforme o grau de enganação e de coação, quem persuade e exorta é criminoso. Deste modo, é curioso refletir sobre o grau de coação que a doutrina jainista exerce sobre as decisões dos seus membros (homens e mulheres) em assumir a Sallekhanā. Parece que o maior poder coagente está nos votos, é o temor pelo descumprimento dos votos assumidos que é o principal motivo que leva a maioria dos seguidores a decidir pela prática da Sallekhanā no fim das suas vidas. A justificativa dos jainista é a de que não existe coação, é o aspirante que decide se deseja ou não assumir a prática da Sallekhanā no fim da sua vida ou diante de uma situação que a viabilize. Agora, a questão é, qual o grau de persuasão e de coação em torno da decisão deste aspirante? O voto de assumir a Sallekhanā pelo aspirante pode também ser feito ainda jovem, portanto com muita antecedência,[13] o que os apologistas da Sallekhanā argumentam como não sendo abrupta e precipitada, portanto sensata, o que lhe reserva, ademais, o direito de desistir do voto, se assim entender no futuro. Desta maneira, a partir de então, o fato é que o aspirante tem uma longa vida de convivência e de doutrinação na comunidade jainista até a data em que se aproxima o cumprimento do voto, o que faz com que ele se torne tão persuadido, que a desistência é muito improvável.

            Portanto, a prática do jejum religioso até a morte (Sallekhanā) só é possível de ser considerada como uma forma de “morte sábia” em sociedades religiosas, que entendem que “crença” é “sabedoria”. Já, para as sociedades mais laicas, que consideram que a sabedoria deve ser encontrada na ciência, a prática da Sallekhanā, muito diferentemente, não é uma “morte sábia”, mas sim uma “morte ignorante”, uma vez que tem como fundamento a crença em dogmas: reencarnação, lei do karma, alma (Jiva), liberação (Moksha), partículas de karmas acumulados na alma, infortúnio pelo descumprimento dos votos, etc. Isto é, dependerá do ambiente cultural no qual a prática do jejum até a morte está inserida. Por exemplo, a greve de fome também é uma forma de jejum até a morte, ou pelo menos uma tentativa, porém com motivação diferente, pois não é um jejum religioso, com base em crenças infundadas, mas sim tem motivação política ou social, com base em fatos concretos ou em ameaças iminentes. Enfim, em uma sociedade tão vulnerável às crendices, tal como a Índia, a prática do jejum religioso até a morte (Sallekhanā) encontra aceitação cultural e, até mesmo, aprovação na Alta Corte. Enquanto que, em uma sociedade predominantemente laica e escolarizada, tal prática assustaria a população como algo bizarro e barbaresco.

Ademais, santidade e austeridade não são sinônimos de sabedoria (Chaugule, 2004: 42), tal como pensam os jainistas, ambas podem muito bem serem frutos da ingenuidade. A santidade muda conforme evoluem os conceitos morais em uma sociedade, bem como a austeridade muda conforme evoluem as técnicas e as tecnologias, dispensando assim a necessidade de sacrifícios para certas tarefas. Um santo pode ser puro, mas, ao mesmo tempo, pode não compreender o que faz ou deixa de fazer. Um asceta que se esforça para aumentar a sua austeridade, pode até alcançar uma inabalável resistência às tentações, mas esta prática não aumenta o seu saber. Também, que “Sallekhanā é um estudo filosófico. Ela é uma parte da filosofia religiosa do Jainismo. Esta filosofia repousa sobre o princípio da elevação do Eu espiritualmente” (Chaugule, 2004: 209). Nas ideias e nas práticas da Sallekhanā existem crendices e auto mortificações, menos filosofia, muito longe disto. Sallekhanā não é um “estudo filosófico”, tal como acreditou Purandar B. Chaugule, mas sim uma persuasão supersticiosa, que leva as pessoas a se matarem sem nunca saberem se os resultados serão alcançados ou não. 

            Em uma sociedade esclarecida, a prática do jejum religioso até a morte (Sallekhanā), a fim de melhorar o karma para a próxima vida ou alcançar a Liberação (Moksha), é um exemplo de primitivismo cultural com base em antigas crendices religiosas, muito diferente do suicídio medicamente assistido, cujo paciente toma a decisão de colocar fim a sua própria vida a partir de dados clínicos e científicos, por isso esta última forma de suicídio alcança cada vez mais aceitação entre os países mais laicos e mais escolarizados, enquanto a tradição da Sallekhanā permanece viva em pais com alto grau de analfabetismo e forte influência supersticiosa em sua cultura, tal como a Índia. Em suma, fora do contexto jainista e/ou religioso indiano, o supersticioso e torturante ritual de Sallekhanā é entendido como uma barbaria corporal incapaz de trazer benefícios, em cumprimento de um conjunto de ideias utópicas e de práticas inócuas, sem comprovação da sua realidade ou da sua efetividade respectivamente, pois tudo é baseado em crendice, e não em ciência.  Portanto, ao invés de uma “morte sábia” (Pandita Marana), a Sallekhana é uma “morte inculta e barbaresca” (Ajnāna Marana).

Sallekhanā é Suicídio ou Não?

             Tal como vimos acima, colocar fim a sua própria vida é suicídio, independente dos motivos ou dos meios empregados em tal ato. Portanto, alegar que os motivos ou os meios justificam ou não a definição do que seja suicídio, não corresponde ao atual conceito de suicídio. Vejamos do lado jainista, por exemplo, um influente texto jainista, o Purushartha Siddhyupaya, no verso 178, afirma que: “Aquele que, movido por paixões coloca um fim a sua vida, através da paralização da respiração,[14] ou pela água,[15] pelo fogo,[16] pelo veneno,[17] ou por armas, é certamente culpado de suicídio” (Prasada, 1933: 72). Esta afirmação sustentou a opinião dos defensores de que a Sallekhanā não é suicídio (Tukol, 1976: 85-97; Chaugule, 2004: 209-21 e Jain, 2016: 192), e a considerarem apenas os suicídios motivados emocionalmente (por paixões e por fortes emoções) e os patológicos como suicídio e, então, excluem do rol dos suicídios aqueles ideologicamente motivados (motivação religiosa, política, social, martírio, nacionalista, terrorista, honra, patriotismo, etc.). Então, para estes apologistas, a greve de fome é suicídio, mas apressar a morte através do jejum religioso (Sallekhanā) não é. O suicídio terrorista em nome de deus, por motivação religiosa e heroica, é suicídio, mas apressar a morte através do jejum torturante e das auto mortificações, não é suicídio, mas sim um meio corajoso e heroico de encarrar a morte sem temor. E o suicídio medicamente assistido, quando o médico orienta o paciente sobre o procedimento e as doses a serem ministradas, é suicídio, mas apressar a morte, através do ritual da Sallekhanā, com a assistência do Niryāpakāchārya (Instrutor Assistente), bem como de outros assistentes e incentivadores, não é suicídio.    

T. K. Tukol, ingenuamente afirmou que “não há algo em comum entre suicídio e Sallekhanā, exceto que, em ambos os casos, há morte. No caso do suicídio, a morte é causada por meios contestáveis, porque um mal é causado ao próprio corpo do suicida e aos interesses e aos sentimentos dos parentes e amigos” (Tukol, 1976: 39). Isto porque T. K. Tukol entendeu o suicídio somente do ponto de vista emotivo e patológico, e não inclui os de natureza ideológica. Bem, dizer que durante a prática do suicídio, alguém maltrata o próprio corpo e que, no ritual Sallekhanā, quando o praticante jejua até a morte, prática acompanhada de torturantes austeridades, tal como vimos acima, não acontece maus-tratos ao corpo do jejuante, é proteger desproporcionalmente um lado (Sallekhanā) e culpar apenas o outro lado (suicídio). Com efeito, em ambos os casos, existem torturas, a diferença reside no cronograma de execução do ato de matar a si próprio, ou seja, enquanto no suicídio patológico a tortura é imediata e rápida, portanto o suicida se livra da tensão da dor imediatamente; na Sallekhanā, muito diferentemente, a tortura é planejada, continuada e gradativa, pode durar até doze anos. De modo que, em razão da duração, a Sallekhanā é até mais torturante do que o suicídio súbito.

Um jejuante da Sallekhana rodeado de assistentes e de familiares.

A alegação mais comum dos defensores da Sallekhanā é a de que a mesma não é decidida e depois praticada movida por paixão ou por forte emoção, por isso não é suicídio (Tukol, 1976: 90-2). Contrariamente, melhor se fosse, pois o que move um aspirante na decisão de assumir o ritual de Sallekhanā é pior do que a paixão e a forte emoção, isto é, o motivo é um insano fanatismo por crenças antiquadas e supersticiosas embutidas em sua mente por muitos anos, através de um encorajamento persuasivo, o que o leva a acreditar na eficácia deste irracional processo de “mortificar o corpo para salvar a alma”. Se no suicídio o motivo é a paixão e a forte emoção, na Sallekhanā o motivo é a ignorância científica do aspirante e dos assistentes que o cercam, portanto longe de ser uma “morte sábia” (Pandita Marana).

            Outra diferenciação entre Sallekhanā e suicídio é sugerida por P. B. Chaugule: “A Sallekahnā é um modo de enfrentar a morte naturalmente, ritualmente, heroicamente, conscientemente e com equilíbrio; enquanto o suicídio é um modo de matar o corpo artificialmente, covardemente e apaixonadamente” (Chaugule, 2004: 215). Analisemos cada uma das partes da Sallekhanā: “um modo de enfrentar a morte naturalmente”. O meio de execução da vítima na Sallekhanā é o jejum, cujos jainistas consideram como um meio natural de colocar fim a vida do aspirante. Ou seja, será a própria natureza que matará o jejuante, e não através de meios artificiais (arma de fogo, forca, explosivo, veneno, etc.). Alguém que se suicida através do afogamento, também se utiliza de um meio natural de se matar, pois a água é um elemento natural, isto é, alguém que mergulha na água, naturalmente morrerá afogado, se não de safar. Portanto, estritamente falando, a morte através do jejum não é uma morte absolutamente natural, uma vez que a morte é provocada pela gradual redução do consume de alimentos e de líquidos, a rigor, é uma morte provocada. “Ritualmente”, o suicídio pela greve de fome também busca a morte através do jejum, porém não necessita de um tão enorme protocolo ritualístico para cumprir o seu propósito. Os rituais e os elementos que os acompanham prejudicam mais o jejuante do que contribuem para levar o aspirante a repensar a sua decisão de apressar a sua morte através de um jejum, pois funcionam como persuasão, incentivo e sugestão, aumentando assim então o seu envolvimento, impedindo o aspirante de perceber a sua situação desde uma perspectiva crítica. “Heroicamente”, ora, apressar a morte através do jejum não representa um ato heroico, o heroísmo está no contrário, isto é, no sacrifício de enfrentar a vida sem apressar o seu fim. “Conscientemente”, este é o mais absurdo de todos, pois a ignorância do jejuante e dos assistentes que o cercam é gigantesca. Estar persuadido ou doutrinado por crenças não é o mesmo que estar consciente do que faz. Como o jejuante poderá estar consciente, se as ideias nas quais ele acredita não têm confirmação científica (existência da alma, reencarnação, lei do karma, libertação, etc.), a fim de ter certeza de que o objetivo daquela “preparação religiosa para a morte” terá efetividade, pois nem sequer temos confirmação da existência de outros mundos, tampouco de uma vida futura.

            Mais adiante P. B. Chaugule continua apontando mais diferenças entre a Sallekhanā e o suicídio: “O suicídio é um ato pessoal secreto executado por um indivíduo em uma estado mental agitado e deprimido. Entretanto, a Sallekhanā não é um ato único, mas um processo que é cerimonialmente executado, com orientação religiosa, que alcança equilíbrio mental, com rituais e votos para purificar o corpo e a alma, antes que a morte ocorra” (Chaugule, 2004: 216). Mais uma vez a insistência de que apenas o suicídio pessoal motivado por forte emoção ou por distúrbio patológico é suicídio, as modalidades de suicídios ideologicamente motivados, cuja Sallekhanā é uma delas, são excluídas do conceito de suicídio. Da mesma maneira que o suicídio Sallekhanā, o qual é um suicídio religiosamente motivado, difere do suicídio pessoal emocionalmente e patologicamente motivado, também as demais modalidades de suicídios ideologicamente motivados (suicídio por greve de fome, martírio, suicídio terrorista, suicídio por causas social, política ou ambiental, etc.) diferem do suicídio motivado por causas emocionais e/ou patológicas. A comparação tem de ser feita com os suicídios ideológicos, e não com o suicídio pessoal motivado por transtorno. Enfim, sem a inclusão dos suicídios ideologicamente motivados, sobretudos os religiosamente motivados, o suicídio Sallekhanā sempre se diferenciará do suicídio pessoal emocionalmente e patologicamente motivado, com isso os jainistas eternamente pensarão que Sallekhanā não é suicídio. Pelo fato de ser executada gradualmente e ritualmente não isenta a Sallekhanā (jejum até a morte) de ser uma forma de suicídio, da mesma maneira que alguém que morre em consequência de uma greve de fome não está isento de ter cometido suicídio.

            E mais, “Sallekhanā também é voluntária (assim como o suicídio passional e patológico), mas não é auto destrutiva” e também “Sallekhanā não é o ato de destruir o corpo” (Chaugule, 2004: 216). Se “definhar o corpo para salvar a alma”, tal como na prática de mortificação da Sallekhanā, não for “auto destrutiva” ou “o ato de destruir o corpo”, tal como descrito no início deste estudo, será difícil encontrar o que seja auto destrutivo ou o que seja destruição do corpo neste mundo. Se a gradual redução da comida e do líquido, a fim de definhar o corpo até a morte, não for auto destruição do corpo, então o que é definhamento do corpo? Aumento do vigor e da saúde?

            E ainda mais, “Ela (a Sallekhanā) é um ritual de deixar o corpo naturalmente e pacificamente reduzindo a comida e dominando as paixões, quando o corpo se torna incapaz de sustentar a vida e de executar seus deveres religiosos normais” (Chaugule, 2004: 216). O fato de uma execução ser efetuada de imediato ou gradualmente não isenta o assassino pelo crime. Portanto, a lentidão na execução do suicídio não a isenta de ser um suicídio. Tirar a vida imediatamente ou gradualmente, ambas são formas de suicídio, a diferença está a apenas na velocidade da execução. Também, “quando o corpo se torna incapaz de sustentar a vida e de executar seus deveres religiosos normais” é uma circunstância semelhante à alguém que recorre ao suicídio medicamente assistido, sendo que este último é uma forma de suicídio, mas os jainistas consideram que o jejum até a morte da Sallekhanā não é.

Após o último suspiro do jejuante da Sallekhana, o seu corpo é carregado em procissão em um festival de alegria.

            E em seguida resume: “O suicídio é cometido sob a influência das paixões, enquanto elas (as paixões) são subjugadas na Sallekhanā. O suicídio é uma morte violenta, enquanto a Sallekhanā é uma aceitação não violenta da morte que é inevitável, e esta aceitação é com equilíbrio mental sem causar dor corporal” (Chaugule, 2004: 216-7). Mais uma vez, o suicídio é entendido limitadamente como aqueles executados sob forte emoção e por motivos pessoais, nunca por motivos ideológicos. Por exemplo, no suicídio medicamente assistido, acontece a “aceitação não violenta da morte que é inevitável e essa aceitação é com equilíbrio mental sem causar dor corporal” e, mesmo assim, é considerado uma forma de suicídio. Pois, não é preciso que a morte seja violenta, ou sob a influência de paixões, para que seja caracterizada como suicídio. Tal como já foram explicados antes, os meios e os motivos não caracterizam se uma maneira de colocar fim a sua própria vida é suicídio ou não. Matar outra pessoa é crime, mas matar outra pessoa em legítima defesa não é crime. A diferença está na culpa, e o que determina a culpa é o motivo. Portanto, tirar a sua própria vida por motivo pessoal e movido por forte emoção é reprovável, porém tirar a sua própria vida por uma causa ideológica ou altruísta poderá ser aprovável dentro de certas sociedades, e até mesmo louvável. Muito diferente, o suicídio terrorista é reprovável por muitas pessoas, mas é aprovável, bem como até incentivado e recompensado, dentro das comunidades extremistas, os familiares dos suicidas são até remunerados.

            Tal como os outros defensores jainistas da Sallekhanā, T. K. Tukol também se limitou a circunscrever o suicídio apenas à modalidade emocional e por motivação pessoal. Ele comparou as intenções do suicida com as intenções do aspirante à Sallekhanā, afirmando que a pessoa que assume o voto da Sallekhanā “deseja ser libertada do cativeiro do karma, o qual é responsável por todos os males no mundo…” (Tukol, 1976: 87). Ora, se o mundo é o local dos males e a pessoa deve buscar se libertar deste mundo, consequentemente esta pessoa está frustrada com este mundo, então ele se contradiz, logo em seguida, quando afirmou que no processo da Sallekhanā “não há a questão de escapar de qualquer vergonha, frustação ou excitação emocional. Não há a intenção de maltratar a si mesmo ou a qualquer membro da sua família” (Idem, 87). Observando mais cuidadosamente, em ambos os casos existem frustações e decepções, no caso do suicida por motivo pessoal, a frustação é com a sua desgraça individual, no caso do aspirante à Sallekhanā, a sua frustação é com o horror do karma.

            Em seguida, ele analisa as situações nas quais o voto de Sallekhanā pode ser adotado, quais sejam: “durante uma calamidade, uma severa escassez de alimentos, velhice ou doença da qual não há solução ou contra a qual não há remédio” (Tukol, 1976: 87; extraído do Ratnakaranda-sravakachara, verso 122). Analisemos cada item: “durante uma calamidade” é uma afirmação muito vaga, pois a avaliação do que é e do que não é uma calamidade, bem como a sua gravidade, pode ser muito relativa. Os mecanismos existentes para a solução das calamidades são muito diversificados e estão bem mais desenvolvidos que no passado, os quais vão desde os diferentes órgãos de assistência humanitária (por exemplo: a Cruz Vermelha Internacional, ONGs e outros), até os atuais programas de recebimento de refugiados por outros países. Portanto, avaliar se alguém está ou não em uma situação de calamidade insolúvel dependerá de como se entende a calamidade em questão. “Uma severa escassez de alimentos”, existem programas de abastecimento para regiões com escassez de alimentos, portanto dependerá de como a região afetada está sendo abastecida. A migração temporária para outra região não afetada pela crise poderá ser uma solução momentânea. Em suma, o cooperativismo internacional hoje está muito mais desenvolvido do que antes, portanto as soluções das calamidades são mais fáceis de serem alcançadas do que no passado. “Velhice”, sabemos que os indivíduos estão vivendo mais do que viviam antes, a média mundial de longevidade está aumentando, graças às novas medidas de prevenção e aos novos cuidados com a saúde. Em geral, as pessoas estão envelhecendo mais tarde e com lucidez. Então, determinar se a velhice ou a caduquice chegou é relativo de um idoso para outro. “Doença que não há solução e contra a qual não há remédio”, hoje existem poucas doenças que não têm soluções, por isso as pessoas estão vivendo mais anos. Os avanços terapêuticos e as novas tecnologias na medicina foram tantos nas últimas décadas, que se torna difícil precisar quais doenças não têm solução ou remédio. Portanto, o diagnóstico da doença incurável deverá ser emitido por um médico e não por um guru jainista.

            Também, ele afirmou que é sob as seguintes situações e sob os seguintes estados mentais que o voto da Sallekhanā deve ser assumido. “A fim de assegurar a completa pureza mental, a pessoa que assume o voto (da Sallekhanā) deve ter subjugado todas as suas paixões e abandonado todos os apegos e posses. Ele não deve ter o sentido de posse. Ele deve colocar um fim a todos os laços familiares e de amizade…” (Tukol, 1976: 88). Ora, se alguém está nestas condições de absoluta pobreza e em tal estado mental de total desapego, não lhe restará mais perspectivas e esperanças na vida. Então, a única opção, após anos de doutrinação jainista infundida na sua mente, pela comunidade onde conviveu, bem como a pressão pelo cumprimento dos votos assumidos no passado, é assumir o voto da Sallekhanā, pois não lhe resta o que esperar, alvejar ou o que fazer, apenas aguardar a morte passivamente. Assim, sob a influência da doutrinação jainista, sem esperanças e na total pobreza, ou seja, ele já é alguém quase morto, não é improvável que ele poderá preferir por apressar o seu fim através do ritual de jejum até a morte da Sallekhanā.

            As consequências da morte através da Sallekhanā são assim interpretadas: “As consequências da morte por Sallekhanā não são sequer danosas ou pesarosas. A atmosfera ao redor do corpo do falecido é uma de veneração. Não há sequer tristeza ou luto. A ocasião é tratada como um festival religioso, com pūjas, bhajans e recitação de mantras religiosos. Não há lugar para tristeza, mas só para alegria. Muitos admirariam as alturas espirituais alcançadas pelo falecido, a calma e a paz com as quais a morte foi encarada, bem como a nova inspiração e a devoção despertadas pelo supremo evento” (Tukol. 1976: 89). Quando muitos acreditam ingenuamente em ideias sem confirmação da sua existência, tais como reencarnação, lei do karma, moksha, etc., é fácil transformar um luto em um festival alegre. De fato, é muita ingenuidade assumir um voto e depois se sacrificar tanto pela esperança de reencarnar em uma situação melhor, quando nem sequer poderá confirmar um dia se todas aquelas mortificações surgiram resultado ou não, pois tudo depende da crença improvável na reencarnação, se esta não existir, todo o sacrifício é inútil e o resultado inócuo. Quando alguém, ou uma comunidade, confunde crença com realidade, as mais bizarras formas de delírios são possíveis.

            Em suma, os argumentos apresentados por T. K. Tukol, em seu livro de referência, Sallekhanā is not Suicide (1976: 85-97), a fim de descriminalizar a Sallekhanā como uma forma de suicídio, com isso não ser enquadrada como suicídio no Código Penal Indiano, bem como exaltar a sublimidade espiritual da sua prática, a rigor, são argumentos restritamente religiosos, com base exclusivamente em crenças, cuja credibilidade só é aceita por aqueles que compartilham as mesmas crendices, portanto sem efeito convincente para aqueles de fora do círculo religioso de crenças comuns. Com isso, o seu discurso parece mais uma pregação religiosa do que uma argumentação racional e científica para um auditório universal, capaz de convencer qualquer um, tanto aqueles de dentro ou aqueles de fora da bolha religiosa. Pois, antes de apresentar todos os seus argumentos religiosos com base em crendices, T. K. Tukol teria de justificar racionalmente e cientificamente se a reencarnação existe.

Análise   

            Analisando resumidamente, quando procuramos identificar se a prática da Sallekhanā é suicídio ou não, a tarefa não deve ser empreendida através da busca pela identificação dos motivos que levam o suicida a tomar a decisão e a praticar o suicídio, pois o próprio ato de tirar a própria vida é suicídio. Agora, para identificar se uma forma de suicídio é ética ou não, a busca terá de ser feita nos motivos que levam o suicida a realizar o ato de colocar fim a sua própria vida. Então, para justificar a ética da prática da Sallekhana, na tentativa de separá-la do suicídio emocional/patológico, tal como fazem os seus defensores, a busca não deve ser feita na distinção entre suicídio emocional/patológico e o suicídio ideológico, cujo ritual da Sallekhanā é um deles, pois ambos são diferentes formas de suicídio. Mas sim nas crenças religiosas que motivam o jainista a decidir pelo voto da Sallekhanā, ainda jovem, bem como depois executar a sua prática, quando o momento chegar, e quando autorizado pelo guru jainista. Os argumentos a favor da separação entre a Sallekhanā e o suicídio emocional/patológico, alegando que a Sallekhanā é praticada através de um bem estruturado sistema de práticas de purificação, com base nas doutrinas jainistas da reencarnação e da lei do karma, sem violência e sem forte emoção, com liberdade para mudar a sua decisão, não é o caminho para se identificar a insustentabilidade das suas crenças e das suas mortificações. Pois, não é a diferença motivacional com relação ao suicídio emocional/patológico que isenta a doutrina e os incentivadores jainista da Sallekhanā de estarem cometendo um crime penal. O que incrimina a sua prática, a sua doutrina e os seus incentivadores é a insustentabilidade das suas crenças e a consequente ineficácia das suas mortificações, se o simples reconhecimento de que a reencarnação não existe acontecer. A morte é um fato, mas a reencarnação é apenas uma crença.

Então, o julgamento se um suicídio ideologicamente motivado é crime ou não, dependerá da cultura de cada sociedade onde a prática acontece. Portanto, em uma cultura, onde as crenças são raramente questionadas e, quando contestadas, alguém poderá ser acusado de crime contra a liberdade religiosa, cuja reencarnação não é entendida como uma crença, mas como uma realidade, apesar da ausência de comprovação científica[18], tal como na Índia, o reconhecimento do crime de incentivo ao suicídio, por uma doutrina religiosa e por seus incentivadores, dependerá da maior ou da menor influência da credulidade na cultura de uma sociedade. Assim, é curioso observar a flagrante contradição, em um sistema religioso que tem como ponto de partida e na base da sua doutrina a não-violência, tal como o Jainismo, a proibição de matar até os mais minuciosos insetos, deveria tragicamente terminar sua doutrinação encorajando seus seguidores na prática do suicídio, somente pelo motivo de que o fim das suas vidas já está próximo, ou que eles ou elas não são mais capazes de cumprir os votos assumidos.

Ademais, que a morte sancionada pela religião não é suicídio, tal como alegado pelos defensores da Sallekhanā, implica em uma cadeia de desdobramentos que ressuscitará uma enorme quantidade de práticas de sacrifício e de suicídio do passado, cada uma reivindicando o direito de retorno da sua prática, mediante a alegação de estarem sendo proibidas do “direito constitucional de liberdade religiosa”. Então, o sacrifício humano (Purushamedha), praticado na Antiguidade Védica, será ressuscitado e descriminalizado, uma vez que é uma forma de sacrifício sancionado pela Religião Védica, portanto não é homicídio. Da mesma maneira, o Sacrifício de Satī será descriminalizado na Índia, pois também é sancionado pela religião e assim por diante com tantas outras atrocidades do passado. Enfim, a resposta é que as superstições não têm mais lugar na cultura contemporânea.   

À guisa de conclusão, a Sallekhanā é sim um tipo de suicídio, porém, diferente dos outros tipos de suicídio instantâneo, a Sallekhanā é um suicídio gradual, cujo jejuante morre progressivamente através do definhamento gradativo do seu corpo, à medida que o jejum se intensifica.  Ela é algo como um “suicídio homeopático”. A ideologia por trás é religiosa, portanto somente sustentada se a supersticiosa crença na reencarnação, na lei do karma e na Libertação é aceita, mesmo sem a comprovação de realidade.     

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Notas

[1] Exemplo: o martírio de santa Perpétua, quem se recusou a aceitar os deuses de Roma, para então morrer devorada pelos leões na arena. Ela tinha a chance de poupar a sua vida, mas preferiu morrer em razão da sua fé cristã. Também, no caso do suicídio terrorista, os companheiros daquele que executa o ato de suicídio, também praticam o suicídio. Exemplo, os companheiros do piloto terrorista do avião que precipitou sobre as Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, em Nova York, não pilotaram o avião, mas são também suicidas, pois se ofereceram para morrer juntamente com o autor do ato, o piloto.

[2] Tal como veremos na parte final deste estudo, a limitação do conceito de suicídio à apenas ao suicídio emocional ou patológico, assim excluindo os suicídios ideológicos, pelos defensores da exclusão da ideia de Sallekhanā como suicídio, é a principal razão para o não reconhecimento da prática da Sallekhanā como suicídio ideológico pelos jainistas.

[3] As religiões salvíficas/libertadores, tais como o Budismo, o Jainismo, o Cristianismo e o Islamismo, pregaram seu caráter soteriológico desde o início, portanto são religiões originalmente soteriológicas. Não foi assim com o Hinduísmo, o qual, nos períodos védico, brahmânico e nas etapas mais antigas dos primeiros upanixades, não pregava uma mensagem libertadora. A primitiva religião hindu era de caráter sacrificial e propiciatório.  A mensagem soteriológica (moksha e nirvana) começou a aparecer nos textos hindus a partir dos trechos mais tardios dos primeiros upanixades (Chandogya e Brhadāranyaka), e nos upanixades do período intermediário (Taittiriya, Aitareya, Kaushitaki, Kena, Katha e outros).

[4] O Dhammapada Páli pertence à corrente Theravāda. Além desta recensão, já foram encontradas as versões completas e quase completas das seguintes recensões:

– O Dhammapada Gāndhārī escrito em uma língua Prakrit de Gandāra, suposto pertencer à corrente Dharmaguptaka.

– As recensões Udānavargas (sânscrita e tibetana) pertencentes à corrente Sarvāstivāda.

– O Patna Dhammapada em uma língua sanscritizada semelhante ao Páli (Palihawadana, 2000: XI).

Existem outas recensões, mas apenas em fragmentos.

[5] Curioso perceber o diversificado conhecimento dos órgãos internos do organismo pelos budistas ainda na Antiguidade, certamente já se praticava a dissecação de cadáveres.

[6] Exemplo da falta de precisão ginecológica do autor deste texto. Não é preciso ser um ginecologista para saber que o parto de uma criança, apesar da proximidade fisiológica, não acontece através da via urinária, toda mulher sabe disto.

[7] P. S. Jain sugeriu que, se retirado o material mitológico, portanto com base apenas no material histórico, a antiguidade do Jainismo, considerando os Tirthankaras anteriores a Mahāvīra que possam ser históricos, não poderá anteceder ao século IX a.e.c. (Jain, 1979: 01n2).

[8] O termo तीर्थंकराः – Tīrthankarāh é também traduzido por “construtores de passagem”, referência àqueles que facilitam e conduzem alguém de uma margem para outra, ou seja, da prisão do samsāra para a libertação (moksha) do ciclo de nascimentos e mortes. Uma palavra composta que nos faz lembrar a palavra pontífice, do Latim: pontifex (construtor de ponte), atributo concedido ao papa.     

[9] Estas são as datas atribuídas pelos Shwetāmbaras, os Digambaras atribuem a data da sua morte em 510 a.e.c. (Fohr, 2015: 35). Alguns autores corrigem as datas para 539-467 a.e.c.

[10] Esta ideia foi concebida na Antiguidade, quando não se conhecia ainda a biologia microscópica, ou seja, antes da invenção do microscópio e, consequentemente, a descoberta da existência das células, das bactérias, etc., pois hoje sabemos que esta tentativa jainista de evitar a morte de organismos microscópicos é infrutífera, uma vez que o organismo humano e animal está composto de mais bactérias do que de células, cujos processos de surgimento e de morte acontecem a todo instante em número de bilhões e em rápida velocidade, tanto nos organismos quanto na natureza. Portanto, mesmo com estas rígidas precauções, o organismo de um monge ou de uma monja jainista está absorvendo ou destruindo bactérias a todo instante em grande escala.  

[11] Os sentidos de Lekhanā atribuído por Kristi L. Wiley (2006: 181) como “definhamento” e por Paul Dundas como “limpo” (sallikhita – 2004: 179) não foram possíveis de serem encontrados nos dicionários, tampouco nos glossários consultados, tanto sânscritos, pális e outras línguas afins (Apte, 1978: 819; Rhys-Davids, 1997; spokensanskrit.org e wisdomlib.org).

[12] Estado localizado na região norte da Índia, com significativa importância histórica.

[13] Purushartha Siddhyupaya, versos 175-6 (Prasada, 1933: 71).

[14] Sufocamento.

[15] Afogamento.

[16] Tal como no Sacrifício Satī.

[17] Envenenamento.

[18] Para conhecer os diferentes argumentos a favor e contra a existência da reencarnação, bem como as diferentes pesquisas já executadas na tentativa de comprová-la ou contestá-la, ver: Botelho, Reicarnation under Scrutiny, 2018.

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