As Divergências nas Traduções do Bhagavad Gītā

por Octavio da Cunha Botelho

A Problemática da Tradução de Textos Sânscritos

Antes de exemplificar como a tradução de uma mesma passagem pode divergir em diferentes tradutores, informarei os motivos que me levaram a interessar pela comparação de traduções. Desde o começo de meus estudos da literatura religiosa da Índia, dois problemas me intrigaram: o alto grau de divergências entre as traduções de um mesmo texto e a despreocupação dos estudiosos em discutir as razões destas disparidades, que sempre me pareceram graves. Mesmo antes de iniciar meus estudos de sânscrito em 1983, na Índia, já havia tomado conhecimento do fato de que um mesmo texto podia ter duas, três, quatro ou mais recensões, sobretudo os mais antigos. Por

Sir_Charles_Wilkins_(1749_–_1836)

Sir Charles Wilkins (1749-1835), autor da primeira tradução do Bhagavad Gītā para o inglês, publicada em 1785.

exemplo, o Katha Upanishad só existe em uma recensão, mas já o Brhadaranyaka Upanishad foi preservado em duas recensões: Kanva e Madhyandina. Por algum tempo, pensei que apenas a pluralidade de recensões deveria ser o motivo das divergências. Entretanto, para certificar-me, era necessária a capacidade de ler o original em sânscrito. Assim, à medida que os conhecimentos de sânscrito progrediam, constatei que as razões das disparidades eram ainda mais complexas do que imaginava e, ao mesmo tempo, continuava a me intrigar a inexistência de análises sobre o problema. Para mim, parecia que as divergências nas traduções eram significativas demais para serem ignoradas, com isso, lancei-me na tarefa de reunir o maior número de traduções de um mesmo texto para compará-las.

Para aqueles que não conhecem a língua sânscrita, a ideia mais comum é a de que, quanto mais clara, mais compreensível e mais explicativa a tradução, melhor é esta tradução. A noção é tão arraigada que, quando alguém está lendo uma obra traduzida, e se esta reproduz uma redação obscura, sobretudo a de textos antigos, a razão é que o tradutor não é bom, portanto não deve ser uma tradução fiel e confiável, consequentemente a leitura é abandonada pelo leitor. Entretanto, quando percebida do ponto de vista das traduções acadêmicas, da Crítica Textual, e do estudo comparado de traduções, a realidade pode ser exatamente o contrário, ou seja, quanto mais clara, mais compreensível e mais explicativa, menos fiel ao texto original e mais sujeita à manipulação interpretativa. Esta ocorrência será mostrada mais adiante através de exemplos de traduções muito claras, mas que desviam do sentido original.

            O que leva os leitores a pensarem assim é o fato de que, muitos deles, são admiradores dos escritos antigos, portanto admitem, sem conhecer o texto na língua original, para poder confirmarem, que estes textos são redigidos com redação perfeita, pois são textos escritos por sábios ou por seres iluminados do passado. Também, as línguas nas quais eles escreveram são idiomas sagrados, portanto perfeitos, de modo que nenhum humano está em posição de apontar seus defeitos, tanto da língua quanto do autor do texto, pois ambos são divinamente inspirados. Enfim, os idiomas sagrados tais como o Sânscrito, o Hebraico, o Árabe e outros não devem ser contestados quanto à sua perfeição, tampouco os autores que escreveram os livros sagrados nestas línguas.

            Agora, por trás da aura de sacralidade que envolve estes antigos textos sagrados, esconde-se o fato de que muitas obras da Antiguidade foram escritas com muitos defeitos de redação, cujas irregularidades não são mais percebidas atualmente em razão das correções feitas pelos copistas dos manuscritos ao longo dos anos de reprodução manuscrita. Trata-se de uma prática comum no processo de transcrição manuscrita de textos antigos a alteração e a omissão de trechos dos textos, por motivos intencionais ou involuntários. Ademais, da mesma maneira, os textos transmitidos oralmente eram corrigidos pelos recitadores durante as recitações. Daí a razão que nos leva a encontrar hoje tantas divergências na redação, no arranjo e na disposição dos capítulos de um mesmo texto antigo, quando comparamos os manuscritos mais antigos e mesmo nas edições impressas. Enfim, às vezes, as diferenças passam a serem tantas, que as redações e os arranjos divergentes recebem os nomes de recensões. De modo que, um mesmo texto pode ter mais de uma recensão.

            Quando os defeitos no texto original não foram corrigidos pelos recitadores ou pelos copistas do passado, durante o período de transmissão oral ou de transcrição manuscrita respectivamente, o mais frequente é o tradutor efetuar as correções, ou omitir na tradução os trechos problemáticos, por iniciativa própria, durante a tradução. Sendo assim, os textos antigos, desde o manuscrito autógrafo[1] até as traduções para as línguas contemporâneas, podem acumular muitas alterações.

Os problemas na tradução podem acontecer quanto:

1) ao sentido enigmático das frases em função das metáforas

2) à sintaxe truncada ou defeituosa

3) aos erros gramaticais

4) à imperícia do tradutor

5) à estanha disposição sintática das palavras nas frases para se encontrar um sentido claro para as línguas contemporâneas

6) ao metro irregular em virtude da dificuldade do compositor em ajustar a redação ao metro

7) às metáforas indecifráveis

8) aos arcaísmos e aos sentidos figurados agora desconhecidos

9) ao frequente emprego de palavras polissêmicas

10) aos pronomes demonstrativos inidentificáveis

11) às corrupções textuais

12) às diferenças redacionais nos distintos manuscritos quando não existe uma edição crítica impressa e

13) aos erros dos copistas de manuscritos.

download (1)

Adi Shankaracharya (788-820 e.c.?), autor do comentário da recensão do Bhagavad Gītā que em seguida se firmou como o textus receptus (texto aceito)

Agora, o curioso é que os tradutores não são sinceros em reconhecer estes embaraços textuais e preferem sacrificar a originalidade do texto, alterando o sentido em favor da intransparência, do que reconhecer a obscuridade e/ou o defeito da redação, pois para muitos tradutores, sobretudo para os de formação religiosa, tratam-se de textos sagrados, portanto infalíveis. Com isso, os textos sânscritos não têm a mesma clareza na redação no cotejo entre si, como também, dentro do mesmo texto, a clareza às vezes não é uniforme. Por exemplo, se for comparada, de modo geral, a clareza sintática e semântica do Katha Upanishad com a do Bhagavad Gītā, verifica-se a maior clareza deste último texto, haja visto que o Katha apresenta muitas passagens com redação obscura, concisa e, sintaticamente truncada, bem como a abundância de versos com o metro irregular é assustadora e a quantidade de erros gramaticais é repreensível, surpreendente para um texto tão admirado religiosamente. Pois, são frequentes neste texto os casos de sequências de versos com a redação muito clara serem interrompidas por um verso obscuro, alguns versos chegam a ser intraduzíveis. Por exemplo, para alguns pesquisadores, certos versos das Samhitās (coleções de hinos) védicas podem ser considerados intraduzíveis, em virtude da concisão e do caráter elíptico da redação, bem como da grande presença de arcaísmos que não são mais possíveis de serem decifrados[2] (para aprofundamento sobre os problemas com as traduções do Sânscrito, consultar, Botelho: 2015: 11-24).

O Idioma do Bhagavad Gītā

            O sânscrito não é um idioma imutável, por ser muito antigo, desenvolveu diferentes formas gramaticais, léxicas e eufônicas. Sua modalidade mais antiga é o Sânscrito Védico (1400 a.e.c. – 300 a.e.c.), cujas diferenças com as formas posteriores são consideráveis. Uma característica gramatical predominante é a separação dos prefixos das palavras que procuravam modificar o significado e o pouco uso das palavras compostas. Estas últimas são a junção de duas ou mais palavras, ou até muitas palavras, para formar uma única palavra composta, tal como veremos em um exemplo abaixo. Em seguida surgiu o Sânscrito Épico-purânico (500 a.e.c. – 400 e.c.), no qual estão escritos os Épicos (Rāmāyana e Mahābhārata), os Purānas e os Upanixades. Este é o sânscrito do Bhagavad Gītā, uma vez que este último faz parte do Mahābhārata. Este se caracteriza pelo aumento no uso de palavras compostas e pelas mudanças no vocabulário. Por fim, o Sânscrito Clássico (400 e.c. – 1500 e.c.), iniciado no império Gupta, o qual passou a utilizar longas palavras compostas.

            Veja abaixo um exemplo da extensão que pode chegar uma palavra composta na língua sânscrita. Este é retirado do primeiro sūtra (aforismo) do primeiro livro do Sāmkhyapravachana Sūtra, de autoria de Kapila, obra do século XIV e.c., portanto do período do Sânscrito Clássico. A redação do aforismo é a seguinte:

Devanāgarī: अथ त्रिविधदुःखात्यन्तनिवृत्तिरत्यन्तपुरुषार्थः

Transliteração: atha trividhaduhkhātyantanivrittiratyantapurushārthah

Para o leitor que desconhece o sânscrito, a segunda palavra parece uma única palavra muito longa, mas não é, trata-se de uma palavra composta formada por sete palavras, conforme a decomposição abaixo:

त्रिविध – trividha = tríplice

दुःख – duhkha = dor

अत्यन्त – atyanta = permanente

निवृत्ति – nivrtti = cessação

अत्यन्त – atyanta = supremo

पुरुष – purusha = pessoa

अर्थः – arthah = propósito

            Então, a tradução deste sūtra é a seguinte: “Agora,[3] a permanente cessação da tríplice dor é o proposito supremo da pessoa”, isto é, para o nosso padrão linguístico, a palavra parece mais uma frase do que uma palavra.  O Bhagavad Gītā também utiliza palavras compostas,  Veja o exemplo abaixo retirado de uma palavra composta formada de cinco palavras do verso II.14:

Devanāgarī: आगमापायिनॊऽनित्यास्तंस्तितिक्षत्व

Transliteração: āgamāpāyinoanityāstāmstitikshatwa

Decomposição de palavra por palavra:

āgama = vem

apāyanah = vão

anityāh = impermanente

tān = eles

titikshatwa – suporte

Tradução: (eles) vem e vão, impermanente, suporte-os, ó Bhārata.

Em razão do uso de menor número de longas palavras compostas e por outros motivos gramaticais, o sânscrito do Bhagavad Gītā, bem como dos outros textos do período Épico-purânico, é a forma mais simples de sânscrito que já foi utilizada na Índia, tão simples que o Gītā é sugerido como leitura introdutória nos cursos preliminares de sânscrito. Talvez esta seja a razão para que o Gītā não tenha tantas divergências na redação quando são comparados os diferentes manuscritos. Comparado com a complexidade do sânscrito dos hinos (Samhitās) védicos, dos Upanixades mais antigos e dos textos do Shivaismo da Caxemira, o sânscrito do Gītā, do Mahābhārata e dos Purānas é bem mais fácil de ser entendido.

O verbo त्यक्त्वा – tyaktwā (tendo abandonado), por exemplo, reproduz alguns dos arcaísmos do Sânscrito Védico conservados no Gītā, ele aparece treze vezes no texto (I. 33; II. 03, 48 e 51; IV. 09 e 20; V. 10, 11 e 22; VI. 24; XVIII. 06, 09 51). Trata-se de um arcaico tempo verbal conhecido por aoristo, utilizado nas versões mais antigas do sânscrito e do grego, cujo uso foi descartado no Sânscrito Clássico. Aoristo significa “indefinido” ou “indeterminado”. Ele é um tempo verbal que expressa uma ação que não define o seu tempo de duração, tampouco o momento em que a ação ocorreu, é uma espécie de tempo passado indefinido, indeterminado. Por isso ele pode ser traduzido de diferentes maneiras, comprometendo a precisão do significado. Ele é algo como uma mistura de gerúndio e particípio passado, tal como: “tendo feito”, “tendo gostado” e “tendo abandonado”, isto é, ele indica ações onde não são identificadas o momento exato da ocorrência, portanto, um tempo verbal inútil. Em virtude da imprecisão, o seu uso foi abandonado no Sânscrito Clássico. O aoristo não existe nas línguas contemporâneas. Com isso podemos perceber que, nem tudo na língua sânscrita é perfeito, tal como pensam os admiradores deslumbrados.

Outro arcaísmo do Sânscrito Védico conservado no Gītā é o advérbio de negação मा – , “não” (II. 03 e 47; XI. 34 e 49; XVI. 05 e XVIII. 66), ao invés de न – na (não), este último utilizado no Sânscrito Clássico. Existe até o caso em que os dois advérbios são utilizados no mesmo verso (II. 03), मा () no primeiro pāda e न (na) no segundo pāda.

A Polissemia no Sânscrito

            Tal como em outras línguas, o sânscrito abunda em palavras polissêmicas, ou seja, termos que possuem mais de um significado ou muitos significados. Por exemplo, em português a palavra “prato” pode significar: vasilha, comida, iguaria, receptáculo de balança ou instrumento musical. No sânscrito, a polissemia pode ser muito mais numerosa, veja o exemplo do verbo धा (dhā), o qual pode significar: colocar, arrumar, derrubar, enfiar, impor, fixar, direcionar, outorgar, segurar, conter, prender, vestir, cobrir, assumir, tomar, ter, mostrar, exibir, possuir, sustentar, suportar, manter, causar, criar, produzir, gerar, fazer, sofrer, incorrer, passar por, executar, trazer, transmitir, apontar e fixar (Apte, 1978: 524 e Sargeant, 2009: 08). Ainda mais polissêmico é o substantivo भावः (bhāvah), cujos significados podem ser: ser, existência, transformação, ocorrência, acontecimento, estado, condição, estado de ser, maneira, modo, ranque, posição, capacidade, verdadeira condição, verdade, realidade, propriedade inata, disposição, natureza, temperamento, inclinação, disposição da mente, ideia, pensamento, opinião, suposição, sentimento, emoção, amor, afeição, apego, conteúdo, impulso, essência, substância, significado, intenção, sentido, resolução, determinação, coração, alma, mente, objeto, coisa existente, criatura, meditação abstrata, contemplação, conduta, movimento, gesto, comportamento, nascimento, o mundo, o universo, útero, vontade, poder sobre-humano, conselho, instrução, uma casa astrológica, um órgão dos sentidos, uma mansão lunar, homem digno e a ideia abstrata transmitida por uma palavra (Apte, 1978: 716).

unnamed (1)

Bhaktivedanta A. C. Prabhupada (1896-1977), autor de uma tradução do Gita com comentários, talvez a tradução mais lida no mundo, graças à publicidade do Movimento Hare Krishna.

           O curioso é que, tal como os exemplos acima, os significados são muito diferentes, sem relação entre si, distinto do caso da palavra “prato”, cujos significados têm relação entre si. Por exemplo, um prato de balança tem semelhança com um prato utilizado para refeição. Já na polissemia de muitas palavras sânscritas, não existe esta relação, são significados muito diferentes, sinalizando para o fato de que um significado não derivava do outro, portanto muitos significados podem ter sido criados arbitrariamente. Essa tão numerosa polissemia é o exemplo de como os antigos eram imprecisos em sua linguagem, a qual foi transferida para os livros religiosos, daí a ambiguidade, o que resultou nas tantas interpretações diferentes e nas tantas correntes distintas.

            Estes são apenas dois exemplos, as palavras polissêmicas em sânscrito são muitas. As línguas antigas eram muito menos específicas do que as línguas modernas, então imagine, no momento da tradução, quando estes termos polissêmicos aparecem, a dificuldade do tradutor em precisar qual o significado para aquele momento. Frequentemente, após a tradução, cada tradutor está convicto de que a sua tradução é o sentido original pretendido pelo autor, portanto muito raro encontrar um tradutor que reconhece os problemas na tradução.

A Edição Crítica do Mahābhārata

            Durante alguns anos da primeira metade do século passado, foi feito um grandioso trabalho de preparação para a edição crítica do Mahābhārata, cujo cotejo reuniu 34 diferentes manuscritos. O professor Franklin Edgerton, quem acompanhou de perto os trabalhos da equipe de pesquisadores, informou que, durante esta pesquisa, dos manuscritos pesquisados, apenas dois deles não incluíam o texto do Bhagavad Gītā completo, e que estes dois não eram manuscritos excepcionalmente antigos e importantes, portando não estavam entre os mais confiáveis. Ele observou também que, diferente do restante do texto do Mahābhārata, onde é possível encontrar muitas diferenças entre os manuscritos, com muitas e sérias interpolações e omissões, algumas longas, os trechos relativos ao texto do Gītā, curiosamente, não apresentavam diferenças consideráveis entre os manuscritos. De todos os 34 manuscritos cotejados, somente um possuía um texto do Gītā com 715 versos, provavelmente a recensão da Caxemira, os demais sempre com 700 versos. Ele comentou também sobre a hipótese, defendida por alguns autores, de que o texto do Gītā foi encurtado, uma vez que uma passagem do Mahābhārata (VI.43.04), em alguns manuscritos e em algumas edições impressas, afirma que o texto do Gītā possui 743 versos, ao invés dos 700 versos, tal como a edição comum (textus receptus). Ele explicou que esta menção só aparece em poucos manuscritos, em sua maioria, manuscritos pobres, e sendo que, mesmo nestes manuscritos que afirmam que o Gītā tem 743 versos, o trecho relativo ao Gītā reproduz apenas 700 versos. E concluiu que “o aparato crítico prova, com base em consistente crítica textual, que todas as versões acima de 700 versos são, em todos os manuscritos, inquestionavelmente interpolações secundárias” (Edgerton, 1965: 197). Este foi um golpe forte nas recensões do Gītā da Caxemira (715 versos) e da Suddha Dharma Mandalam (745 versos).

E terminou a sua nota lamentando que pesquisadores, mesmo após a publicação da edição crítica do Mahābhārata, ainda continuam confiando nas edições vulgatas de Calcutá, de Bombaim e de Kumbhakonan como referência, edições sem aparato crítico. A conclusão que este autor chegou foi a de que “não há boa razão para duvidar que o texto do Gītā, tal como o usualmente impresso, seja precisamente a mais antiga forma agora disponível, e neste sentido precisamente o ‘original’ de todas as variantes versões, com a exceção de umas poucas incertezas verbais, que raramente ultrapassam poucas palavras. Em particular, quando manuscritos são mais longos que o texto padrão, as partes suplementares são invariavelmente interpolações secundárias” (Edgerton, 1965: 197n).

De certa maneira, este imenso trabalho de pesquisa e de amplo cotejo de manuscritos, cujo resultado foi a edição crítica do Mahābhārata, publicada inicialmente por V. S. Sukthankar, depois continuada por S. K. Belvalkar, foi um golpe de misericórdia na já desacreditada recensão do Gītā da Suddha Dharma Mandalam, com 745 versos e 26 capítulos, pois não foi encontrado sequer um manuscrito que tivesse esta quantidade de versos e disposto no arranjo e na ordem de slokas, tampouco próxima disto, tal como na versão publicada pela SDM (Ver: Botelho: 2018: 03-5 e Bagchee, 2016: passim).

42106292_303

Mahatma Gandhi (1869-1948), traduziu o Gītā para o gujarati (1929), depois para o inglês (1931).

Na outra extremidade, como contraponto à hipótese de que o texto do Gītā foi encurtado, está a hipótese contrária daqueles que defendem o processo de acréscimos, isto é, “de que o Gītā era inicialmente um tratado de Samkhya-Yoga não sectário, que mais tarde foi, gradativamente, interpolado com ideias do sistema Vedānta, a fim de transformá-lo em um texto vedantino, de maneira que, os primeiros capítulos que tratam do Samkhya-Yoga representam os trechos originais, enquanto os trechos seguintes, carregados de ideias vedantinas, são interpolações tardias” (Botelho, 2018: 05). Também, “uma forte suspeita da ocorrência de acréscimos no texto é o fato de o diálogo ter ocorrido logo antes do início de uma batalha, quando os soldados estavam em formação, prontos para o combate e ansiosos para lutar, de maneira que não haveria paciência para aguardar um longo diálogo de 700 shlokas (ou 701 versos em duas linhas). Muito provavelmente, a primeira composição deveria ter sido um texto bem mais curto” (Idem: 05).

Ademais, “outros pesquisadores sugerem, talvez mais acertadamente, que a composição do Gītā é o resultado de um longo processo de acréscimos por autores anônimos, com a intenção de transformá-lo em um compêndio que reunisse temas de diferentes correntes do Hinduísmo, cujas interpolações deixaram de ser acrescidas a partir do comentário de Sri Shankarāchārya (788-820 e.c.), para então esta versão comentada se tornar o texto aceito (textus receptus) da totalidade da comunidade hindu” (Idem: 05).

Traduções Coincidentes e Traduções Divergentes

            Para indicar e analisar todas as traduções controversas no Gītā exigiria um texto muito mais longo do que este estudo, portanto serão mencionadas e analisadas aqui apenas algumas poucas passagens. As traduções abaixo poderão mostrar ao leitor o tanto que a tradução de uma mesma passagem pode aproximar ou divergir de um tradutor para outro. De modo que, as citações abaixo seguirão uma ordem a partir das traduções mais literais, para em seguida as mais interpretativas e explicativas, para finalmente as mais digressivas e, quando existir o caso, as mais fantasiosas, ou seja, um gradual distanciamento do sentido mais literal para o mais digressivo.

Comecemos com a divergência na tradução de um verbo polissêmico vidyate, o qual aparece duas vezes na primeira linha do verso II.16:

Devanāgarī: नासतॊ विद्यते भावॊ नाभावॊ विद्यते सतः

Transliteração: nāsato vidyate bhāvo nābhāvo vidyate satah

Decomposição palavra por palavra:

न (na) = não

असतः (asatah) = do inexistente, do irreal (caso genitivo)

विद्यते (vidyate) =  (ele ou ela) conhece, compreende, descobre, sente, experimenta, ensina, considera, declara, expõe, é, existe, há, raciocina e examina (verbo na terceira pessoa do singular)

भावः (bhāvah) = o ser

न (na) = não

अभावः (abhāvah) o não ser

विद्यते (vidyate) =  (ele ou ela) conhece, compreende, descobre, sente, exprimenta, ensina, considera, declara, expõe, é, existe, há, raciocina e examina (verbo na terceira pessoa do singular)

सतः (satah) = do existente, do real (caso genitivo)

Tradução literal: Do inexistente não existe o ser; do existente não existe o não ser.

            Uma tradução próxima à tradução literal é de Alladi Mahadeva Sastry, ele traduziu o verbo विद्यते (vidyate) por “há” e manteve असतः (asatah) “do irreal” e सतः (satah) “do real” no genitivo, então a primeira linha da tradução deste verso ficou assim: “Do irreal não há o ser, não há não ser do real” (Sastry, 1987: 34).

S. Radhakrishnan traduziu de forma quase semelhante: “Do inexistente não há vir a ser; do existente não há cessação de ser” (Radhakrishnan, 1949: 106).

K. T. Telang também traduziu विद्यते (vidyate) no sentido de “há”, mas transformou o caso genitivo de असतः (asatah) “do inexistente”, “do irreal” e de सतः (satah) “do existente”, “do real” em caso dativo असता (asatāh) e सता (satāh) “para o irreal” e “para o real” respectivamente. Sua tradução da primeira linha do verso então ficou assim: “Não há existência para aquilo que é irreal, não há inexistência para aquilo que é real” (Telang, 1998: 44).

            A tradução literal de Franklin Edgerton ficou um tanto obscura: “Do que não é, nenhuma vinda ao ser ocorre; nenhuma não-vinda a ser ocorre do que é” (Edgerton, 1996: 17).

R. Sampatkumaran seguiu a mesma linha de tradução de K. T. Telang e traduziu assim: “Para aquilo que não é, não há existência; para aquilo que é, não há inexistência” (Sampatkumaran, 1985: 26).

J. W.  Johnson também trocou o caso genitivo pelo caso dativo e introduziu as palavras “vinda” e “declínio”: “Para o inexistente não há vinda para a existência; para o existente não há declínio para o inexistente” (Johnson, 1994: 08).

            Swami Swarupananda traduziu vidyate por “é”, mas introduziu o advérbio “nunca”: “O irreal nunca é; o real nunca não é” (Swarupananda, 1967: 38).

            Bhagavan Das também utilizou o advérbio “nunca” e introduziu o verbo “ter”: “O irreal não tem ser; o real nunca cessa de ser” (Das, 1979: 30).

            Sri Aurobindo introduziu os verbos “sair” e “vir” através de uma tradução mais explicativa: “Aquilo que realmente é, não poder sair da existência; exatamente como aquilo que é inexistente não pode vir a ser” (Aurobindo, 2004: 05).

S. Sankaranarayanan, tradutor da recensão da Caxemira, introduziu os substantivos “nascimento” e “destruição”, bem como o verbo “acontece”. Este verso aparece na passagem II.17 na recensão da Caxemira, sem diferença na redação sânscrita com a recensão comum (Belvalkar, 1941: 30), ao invés da II.16 da recensão comum: “O nascimento (ou existência) não acontece ao que é inexistente; e a destruição (ou inexistência) ao que é existente” (Sankaranarayanan, 1985: 22).

            Mais digressiva é a tradução de Bhaktivedanta A. C. Prabhupada: “… o inexistente (o corpo material) não há duração e do eterno (a alma) não há mudança” (Prabhupada, 2004: 116-7).

            Winthrop Sargeant traduziu o verbo विद्यते (vidyate) por “é considerado, é julgado” e sua tradução resultou assim: “É considerado que o irreal não tem ser; é considerado que não há não-ser do real” (Sargeant, 2009: 101).

            Na recensão da Suddha Dharma Mandalam, este verso está na passagem XVIII.01, ao invés da II.16 da recensão comum. Apesar da imensa diferença no arranjo e na ordem dos versos, a redação sânscrita do verso é exatamente a mesma da recensão comum. Através de uma tradução que está mais para uma interpretação doutrinária, esta tradução alterou o sentido ontológico, tal como nas traduções anteriores, para um sentido comportamental e moral, por isso o sentido difere muito das outras traduções: “Bhava (própria ou Suddha-Pravritti) ou ação necessária não é constituída pela execução de ação asat (proibida), abhava (própria ou Suddha-Nivritti) ou cessação da ação proibida não é constituída pela não execução da ação sat (legítima)” (Row, 1939: 127-8).

            Eknath Easwaran, conhecido por sus traduções deformadas dos Upanixades, traduziu esta primeira linha do verso assim: “O impermanente não tem realidade, a realidade jaz no eterno” (Easwaran, 2007: 90).

            Não faltaria quem traduzisse विद्यते (vidyate) por “saiba”, “conheça”, tal como a tradução digressiva de Vladimir Antonov: “Saiba que o transitório, impermanente, não tem existência verdadeira; e o eterno, imperecível, nunca deixa de existir” (Antonov, 2008: 16).

            Na tentativa de simplificar o entendimento do Gītā para o público ocidental, Jack Hawley traduziu em um sentido explicativo e digressivo: “O Real, tal como usado na espiritualidade, significa que aquilo que é eterno, nunca muda, indestrutível. Esta é a verdadeira definição de Realidade. Aquilo que é Real nunca deixa de ser. Algo que é impermanente, mesmo se dura um longo tempo e parece durável, eventualmente muda e assim não tem verdadeira Realidade” (Hawley, 2011: 32). Para o leitor que não consegue ler o original sânscrito, esta última tradução parece ser a melhor, pois é mais clara e mais explicativa que as anteriores. Porém, quando consultado o texto sânscrito, percebemos que ela não é a mais fiel ao original, ao contrário, a mais digressiva e interpretativa.

            Em razão da necessidade de muito espaço, não será possível comparar e analisar aqui todas as passagens com traduções controversas do Gītā, portanto analisaremos apenas outro verso no mesmo capítulo, II.54, desta vez uma pergunta do discípulo Arjuna:

Devanāgarī: अर्जुन उवाच

स्थितप्रज्ञस्य का भाषा समाधिस्थस्य केशव ।

स्थितधीः किं प्रभाषेत किमासीत व्रजेत किम् ॥ ५४ ॥

Transliteração: Arjuna uvācha

Sthitapragnasya kā bhāshā samādhisthasya keshava

Sthitadhīh kim prabhāsheta kimāsīta vrajeta kim (54)

            As traduções das palavras भाषा (bhāshā), स्थितप्रज्ञा (Sthitapragnā), समाधिस्थस्य (samādhisthasya), किं (kim) e प्रभाषेत (prabāveta) são controversas. O substantivo feminino भाषा (bhāshā) tem múltiplos significados: discurso, conversa, linguagem, idioma, definição, descrição, dialeto e é conhecido também como um epíteto da deusa Saraswati. A tradução do pronome interrogativo neutro किं (kim) por “como?” pode ser gramaticalmente problemática. Também, o significado da última linha do verso é estranho, por isso podemos encontrar traduções que omitem a tradução deste trecho.

            Winthrop Sargeant transformou o substantivo feminino भाषा (bhāshā) em verbo e sua tradução ficou assim:

Arjuna falou:

Como alguém descreve aquele que é de sabedoria firme, que é firme na meditação profunda, ó Krishna (Keshava)?

Como fala aquele que é firme na sabedoria? Como ele se senta? Como ele se move”? (Sargeant, 2009: 139).

            Para se transformar o substantivo भाषा-bhāshā em verbo da terceira pessoa do singular, a redação do verbo é a seguinte: भाषति-bhāshati (ele ou ela descreve), substantivo e verbo, ambos derivam da raiz verbal भाष्-bhāsh (dizer, falar, declarar, descrever). O significado da última linha do verso é estanha, por isso alguns intérpretes entendem que a frase “como ele se senta?”, significa “como ele se senta para meditar?” e a frase “como ele se move?”, o sentido é o de “como ele se comporta?”

K. T. Telang encontrou um significado diferente para o substantivo भाषा (bhāshā), e o traduziu no plural (características), sendo que no original a palavra está no singular, então ao invés de भाषा (bhāshā), teria de estar भाषाः (bhāshāh), no plural, com o visarga (aha) no final. Sua tradução ficou assim:

Arjuna disse:

Quais são as características, ó Keshava (Krishna), daquele cuja mente é firme, e que é dedicado à contemplação? Como deve aquele de mente firme falar, como deve se sentar, como deve se mover”? (Telang, 1998: 49).

            Bhagavan Das traduziu भाषा (bhāshā) por “marca”. O verbo व्रजेत-vrajeta (deve ir) também é polissêmico e deriva da raiz verbal व्रज् (vraj), que significa: ir, caminhar, aproximar, visitar, partir, retirar, passar o tempo e atingir. Este tradutor preferiu o sentido de “caminhar”.  Então, sua tradução ficou assim:

Arjuna disse:

Qual é a marca daquele que é estável de mente, firme na contemplação, ó Keshava, como o de mente estável conversa, como ele se senta, como ele caminha”? (Das, 1979: 47-8).

R. Sampatkumaran traduziu भाषा (bhāshā) por “linguagem” e passou todos os verbos da segunda linha para o tempo futuro, a tradução do terceiro pāda ficou confusa com o uso de qual? ao invés de como? Por isso sua tradução ficou assim:

Arjuna disse:

Qual, ó Krshna (Keshava), é a linguagem sobre aquele que é de firme entendimento e está estabelecido no controle sobre sua mente? Qual será a fala daquele de firme entendimento? Como ele se sentará (meditará), e como ele se moverá (e fará as coisas)”? (Sampatkumaran, 1985: 54).

A. M. Sastry traduziu भाषा (bhāshā) por “descrição”:

Arjuna disse:

Qual, ó Keshava, é a descrição daquele de conhecimento firme, que é constante na contemplação? Como aquele de conhecimento forme fala, com senta, como se move”? (Sastry, 1987:68).

            Franklin Edgerton traduziu भाषा (bhāshā) por “descrição” e स्थितप्रज्ञस्य- Sthitapragnasya por “homem de mentalidade estabilizada”:

Arjuna disse:

Qual é a descrição do homem de mentalidade estabilizada, que é fixo na concentração, Keshava? Como poderia o homem de mentalidade estabilizada falar, como poderia ele se sentar, como poderia caminhar”? (Edgerton: 1996: 27).

             A tradução de W. J. Johnson ficou um tanto parecida:

Arjuna disse:

Ó Keshava, como você descreve aquele homem cuja mentalidade é estável, cuja concentração está fixa? O que deve dizer o homem cujo pensamento está estabelecido? Como ele deve se sentar? Como ele deve caminhar”? (Johnson, 1994: 11).

A tradução de S. Radhakrishnan:

Arjuna disse:

Qual é a descrição do homem que tem esta sabedoria firmemente percebida, cujo ser é firme em espírito, ó Keshava (Krshna)? Como deveria falar o homem de inteligência estabelecida, como deveria ele se sentar, como deveria ele caminhar”? (Radhakrishnan, 1949: 122).

            Na recensão da Caxemira, este verso aparece na passagem II.56, ao invés da II.54 da recensão comum. Observe as diferenças com as traduções acima:

Arjuna disse:

Ó Keshava, qual é a conotação de sthitapragna (um homem de intelecto estável), (aplicado) a um homem fixo na concentração? O que o sthitapragna (o de mente fixa) comunicaria? Onde o de mente fixa residiria? E o que ele alcançaria”? (Sankaranarayanan, 1985: 34).

A. C. Prabhupada introduziu o sentido de sintoma:

Arjuna disse;

Ó Krishna, quais são os sintomas daquele cuja consciência está fundida na transcendência? Como ele fala, e qual é a sua linguagem? Como ele se senta, e como ele caminha”? (Prabhupada, 2004: 174-5).

            Sri Aurobindo traduziu भाषा (bhāshā) por “sinal”:

Arjuna disse:

Qual o sinal do homem em Samadhi cuja inteligência está firmemente fixa na sabedoria? Como o sábio de entendimento estável fala, como ele se senta, como ele caminha”? (Aurobindo, 2004: 07).

            Uma tradução bem diferente das anteriores é a por Jack Hawley:

Arjuna, ouvindo atentamente, interrompe: ‘Mas Krishna, como alguém identifica a pessoa iluminada que você descreve, aquele absorvido no Divino? Como tal pessoa falaria, sentaria e se moveria de um lado para outro’? (Hawley, 2011: 37).

            Na recensão da SDM, este verso aparece na passagem V.02, ao invés da II.54 da recensão comum. A palavra भाषा (bhāshā) foi traduzida por “marca”. Algumas palavras da primeira linha do verso ficaram sem tradução e a segunda linha não foi traduzida por completo, veja:

Ó Keshava, qual é a marca de um Sthitapragna, de um Samadhistha, como um Sthitadhi atua no processo do mundo”? (Row, 1939: 39-40).

Vinte Traduções Diferentes de um Mesmo Verso

            Por fim, mais divergentes do que as traduções acima são as do verso VIII.04, impossível encontrar uma tradução que coincida com a outra.

Devanāgarī:

अधिभूतं क्षरो भावः पुरुषश्चाधिदैवतम् ।

अधियज्ञोऽहमेवात्र देहे देहभृतां वर ॥ ४ ॥

Transliteração:

Adhibhūtam ksharo bhāvah purushashchādhidaivatam

Adhiyajnoahamevātra dehe dehabhrtām vara

            Observe as divergências e as coincidências nas 20 traduções abaixo, algumas são tão diferentes que até parece que não são traduzidas a partir do mesmo verso. Apenas a frase final देहभृतां वर-dehabhrtām vara (ó melhor dos incorporados) coincide nas traduções:

“Todas as coisas perecíveis são o Adhibhūta. O Adhidaivata é o ser primordial. E eu mesmo neste corpo, ó melhor dos seres incorporados (Arjuna), sou o Adhiyajna” (Telang, 1998: 77).

“O conhecimento dos elementos diz respeito à minha natureza perecível, e o conhecimento dos seres brilhantes diz respeito à energia que dá vida, o conhecimento do sacrifício fala de Mim, como vestindo o corpo, ó melhor dos seres vivos” (Das, 1979: 145-6).

“Na relação aos seres está o estado transitório, na relação ao divino, o espírito; na relação ao sacrifício está Eu mesmo aqui no corpo, ó melhor dos seres incorporados” (Johnson, 1994: 37).

“O ser-em-excesso é a condição perecível (do ser), e o espírito é a divindade-em-excesso; a adoração-em-excesso sou Eu mesmo, aqui no corpo, ó melhor dos seres incorporados” (Edgerton, 1996: 83).

“A região física (Adhibhuta) é a existência perecível, e o Purusha, ou a Alma, é a região divina (Adhidaivata), E Eu mesmo, aqui no corpo, sou Adhiyajna (Entidade relacionada com o Sacrifício), ó melhor dos incorporados” (Sastry, 1987: 224).

“As entidades materiais superiores (adhibhūta) são as coisas perecíveis. E o que é superior aos deuses (adhidaivatam) é o Purusha (a alma individual), ó melhor dos seres incorporados, Eu sou Eu Mesmo aqui neste corpo a essência do sacrifício (adhiyajna)” (Sampatkumaran, 1985:204).

“A base de todas as coisas criadas é a natureza mutável, a base dos elementos divinos é o espírito cósmico. E a base de todos os sacrifícios, aqui no corpo sou Eu Mesmo, ó melhor dos seres incorporados” (Radhakrishnan, 1949: 228).

“O Adhibhuta é a natureza perecível do ser (ou a esfera do supremo espírito ao atuar no indivíduo, isto é, natureza). O Adhidaivata é o supremo agente divino em si mesmo (o Purusha). Eu Mesmo sou o Adhiyajna (Senhor do Sacrifício) aqui neste corpo, ó Arjuna” (Sargeant, 2009: 352).

“A natureza mutável é o senhor dos seres materiais, somente a Pessoa é o senhor das divindades; somente eu sou o Senhor dos sacrifícios e eu, ó melhor das almas incorporadas, resido neste corpo” (Sankaranarayanan, 1985: part two, 160).

“Aquilo que subjaz todos os elementos é a entidade perecível, e aquilo que subjaz todos os deuses é o Purusha, o Espírito Cósmico. E Aquele que sustenta todos os sacrifícios é o mesmo que eu, aqui no corpo, ó melhor dos homens” (Nikhilananda, 1944: 198).

“Ó melhor dos seres incorporados, a natureza física, a qual está constantemente mudando, é chamada de adhibhuta (a manifestação material). A forma universal do Senhor, que inclui todos os semideuses, tal como aqueles do sol e da lua, é chamada de adhidaiva. E Eu, o Supremo Senhor, representado como a Super Alma no coração de todo ser incorporado, sou chamado de adhiyajna (o Senhor do sacrifício)” (Prabhupada, 2004: 500).

Adhibhuta é ksharobhava, adhidaiva é o Purusha, eu mesmo sou o Senhor do Sacrifício, adhiyajna aqui no corpo, ó melhor dos seres incorporados” (Aurobindo, 2004: 19).

“O perecível adjunto é o Adhibhuta, e o Morador Interno é o Adhidaivata; somente eu sou o Adhiyajna aqui neste corpo, ó melhor dos incorporados” (Swarupananda, 1967: 181).

“O conhecimento sobre o material – diz respeito à natureza; o conhecimento sobre o Divino – diz respeito ao purusha. O conhecimento sobre o Sacrifício Superior – diz respeito a Mim neste corpo, ó melhor dos incorporados” (Antonov, 2008: 44-50).

“A Matéria é o reino da terra, que com o tempo passa; mas o espírito é o reino da Luz neste corpo que eu ofereço sacrifício, e meu corpo é um sacrifício” (Mascaró, 1975: 77).

“O Adhibhuta é a minha forma perecível. O Adhidaiva é o eu individual naquela forma; e, ó melhor entre os incorporados, eu sou o Adhiyajna neste corpo purificado pelo sacrifício” (Gandhi, sem data: 102).

“Uma condição perecível é a base de todas as coisas materiais; o espírito (purusha) é a base dos elementos divinos, e eu sou a base de todo sacrifício aqui no corpo, ó melhor dos incorporados” (Deutsch, 1982: 78).

 

O Adhibhuta pertence à Natureza imperecível e o Purusha é o Adhidaivata; somente eu sou o Adhiyajna aqui neste corpo, ó melhor dos incorporados” (Chidbhavananda, 1972: 454).

            Na recensão da SDM, este verso aprece na passagem XVI.04, a redação do verso em sânscrito é a mesma da recensão comum:

Adhibhoota é a natureza da Prakriti (Kshara); Adhidaivata é o Supremo Purusha (com Brahma-Shakti) e, neste corpo (também cosmos), ó tu melhor dos homens, eu (Paramatma como o Morador Interno) sou o Adhiyagna” (Row, 1939: 115).

“O adhibhuta é o corpo perecível, o adhidaiva é o Purusha, o espírito eterno. O adhiyajna, o sacrifício supremo, é feito para mim como o Senhor dentro de você” (Easwaran, 2007: 165).

Conclusão

285px-1785_Bhagavad_Gita_translation_English

Capa da edição da primeira tradução inglesa do Bhagavad Gītā por Sir Charles Wilkins, publicada em 1785.

            Com base apenas nas comparações destas três passagens acima é possível projetar o quanto as divergências nas traduções acontecem nos 700 versos do texto todo. Quanto mais passagens são comparadas, com maior número de tradutores distintos, mais diferenças são encontradas nas traduções. Agora, o intrigante é perceber como estas divergências nas traduções não representam problemas para quase todos envolvidos com o Gītā. Portanto, é muito raro encontrar um tradutor que reconheça os problemas na tradução que causam tantas divergências. Quando a questão é raramente mencionada, a maioria pensa que a sua tradução é a correta e que as outras são falhas, sobretudo no meio religioso, já no meio acadêmico esta convicção é menor.

            As traduções confessionais são mais eficientes para efeito de doutrinação de seguidores, enquanto as traduções acadêmicas são mais eficientes para se conhecer a originalidade da mensagem do autor da obra, independente do significado que os doutrinadores de discípulos pretendem que o leitor acredite. Com isso, traduções confessionais e traduções acadêmicas podem diferir consideravelmente, tal como foi apontado nos cotejos acima. Por isso é comum encontramos autores confessionais criticando as traduções acadêmicas, mediante a alegação que alguém de fora da tradição não está apto a traduzir os textos sagrados. Em regra geral, os tradutores acadêmicos nunca criticam as outras traduções.

Referências

ANTONOV, Vladimir (tr.). Bhagavad Gita with Commentaries. Eletronic Edition, 2008.

APTE, Vaman Shivram. The Practical Sanskrit-English Dictionary. Delhi: Motilal Banarsidass, 1978.

AUROBINDO, Sri. Essays on the Gita. Pondicherry: Sri Aurobindo Ashram Trust, 1997.

_____________ (tr.). The Bhagavad Gita. 1938, (Eletronic Edition, 2004).

BAGCHEE, Joydeep and Vishwa Adluri. Who’s Zoomin’ Who? Bhagavad Gītā Recensions in India and Germany em International Journal of Dharma Studies. December 2016, 4:4. Eletronic Edition, DOI: 10.1186/s40613-016-0026-8.

BELVALKAR, S. K. (ed.). Srimad-Bhagavad-Gita with the Jnannakarmasamuccya Comentary of Ananda [Vardhana]. Poona: Bilvakunja Publishing House, 1941.

BOTELHO, Octavio da Cunha (tr.). Katha Upanishad: Transliteração, Tradução Comparada, Notas Críticas e Estudos Introdutórios. São Paulo: AgBook, 2015.

_________________________________________ O Encobrimento da Menção às Casta no Bhagavad Gītā. Edição eletrônica, 2018, DOI: 10.13140/RG.2.2.36280.65286

CHIDBHAVANANDA, Swami (tr.). The Bhagavad Gita. Tirupparaitturai: sri Ramakrishna Tapovanam, 1972.

DAS, Bhagavan and Annie Besant (trs.). Bhagavad Gītā. Madras (Chennai): The Theosophical Publishing House, 1979.

DAVIS, Richard H. The Bhagavad Gita: A Biography. Princeton: Princeton University Press, 2015.

DEUTSCH, Eliot (tr.). The Bhagavad Gītā: Translated, with Introduction and Critical Essays. Lanham: University Press of America, 1982.

EASWARAN, Eknath (tr.). The Bhagavad Gita. Berkeley: Nilgiri Press, 2007.

EDGERTON, Franklin. The Beginnings of Indian Philosophy. London: George Allen & Unwin Ltd, 1965.

_______________________ (tr.). The Bhagavad Gītā (Harvard Oriental Series, vols. 38 & 39). Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1996.

GANDHI, Mahatma (tr.). The Bhagavad Gita According to Gandhi. Berkeley: North Atlantic Books, no date.

HAWLEY, Jack (tr.). The Bhagavad Gita: A Walkthrough for Westerns. Novato: New World Library, 2011.

JOHNSON, W. J. (tr.). The Bhagavad Gita. Oxford: Oxford University Press, 1994.

MASCARÓ, Juan (tr.). The Bhagavad Gita: Translated from the Sanskrit with an Introduction. Harmondsworth: Penguin Books, 1975.

NIKHILANANDA, Swami (tr.). The Bhagavad Gita. New York: Ramakrishna-Vivekananda Center, 1944.

PRABHUPADA, A. C. Bhaktivedanta Swami (tr.). Bhagavad Gītā As It Is. Los Angeles: Bhaktivedanta Book Trust, 1972, Eletronic Edition 2004.   

RADHAKRISHNAN, S. (tr.). The Bhagavad Gītā: with an Introductory Essay, Sanskrit Text, English Translation and Notes. London: George Allen and Unwin Ltd, 1949.

ROW, R. Vasudeva and T. M. Janardanam (trs.). Srimad Bhagavad Gītā of Bhagavan Sri Krishna. Madras: The Suddha Dharma Office, 1939.

SAMPATKUMARAN, M. R. (tr.). The Gītābhāshya of Rāmanuja. Bombay: Ananthacharya Indological Research Institute, 1985.

SANKARANARAYANAN, S. (ed.). Srīmadbhagavadgītā with Gītārthasangraha of Abhinavagupta, part two. Tirupati: Sri Venkateswara University Oriental Institute, 1985.

SARGEANT, Winthrop (tr.). The Bhagavad Gītā. Albany: State University of New York Press, 2009.

SASTRY, Alladi Mahadeva (tr.). The Bhagavad Gita with the Commentary of Sri Sankaracharya. Madras: Samata Books, 1987.

SHARMA, Arvind (tr.). Gītārthasangraha. Leiden: E. J. Brill, 1983.

SWARUPANANDA, Swami (tr.). Shrimad-Bhagavad-Gita. Calcutta: Advaita Ashrama, 1967.

TELANG, K. T. (tr.). The Bhagavadgītā with the Sanatsujātīya and the Anugītā. (The Sacred Books of the East, volume 08). Delhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1998.

THE DIVINE LIFE SOCIETY. Srimad Bhagavad Gita or The Universal Gospel. Rikhikesh: The Divine Life Society, 1946.

THEODOR, Ithamar (tr.). Exploring the Bhagavad Gita: Philosophy, Structure and Meaning. London: Routledge, 2016.

Notas

[1] O manuscrito escrito pelo próprio punho do autor.

[2] Divergências nas traduções de textos antigos não acontecem exclusivamente com os documentos indianos, mas também com a literatura de outros povos da Antiguidade.  O Tao Te Ching, que a tradição taoísta atribui a autoria a Lao Tzu, por exemplo, talvez seja o texto oriental mais traduzido para as línguas contemporâneas, no entanto, é difícil encontrar uma tradução que coincida com a outra em apenas alguns pequenos trechos. Parece ser o texto asiático com o maior número de traduções divergentes em vista da sua redação enigmática e paradoxal.

[3] O advérbio “agora” (अथ – atha) aparece no início de muitos sūtras hindus, pois é o sinal de que o texto é uma continuação de uma lição anterior, e que agora o tema é alterado, ou seja, se tratava de um assunto antes e agora será tratado um novo assunto. É também um sinal de que os textos escritos são derivados da comunicação oral do passado.

4 comentários sobre “As Divergências nas Traduções do Bhagavad Gītā

  1. Olá, Otávio, como vai? Estou iniciando minhas leituras no Bhagavad Gītā. Contudo me deparei com alguns problemas: Em muito as palavras de Krishna aparentam a de Jesus. Achei muito curioso, no começo, mas fui pesquisar sobre a tradução e pude ver que os tradutores já haviam escrito sobre Jesus. Posso estar enganado, mas pelo que escreveu no site, os tradutores dessa versão que leio (Bhagavad Gītā com comentários, 2016) muito tendem à adequar o vocabulário ao que estão acostumados, ou Krishna, realmente falava como Jesus. Enfim, posso confiar nesse material de leitura?
    Obrigado.

    • Prezado Thiago Farias
      Grato pelo seu comentário e percebo que são naturais suas dúvidas. Tal como apontadas no estudo acima, as traduções do Bhagavad Gita são muito divergentes, ao ponto de encontramos versões traduzidas através de uma linguagem cristã, a fim de atender ao gosto dos leitores cristãos e, com isso, alcançar efeito persuasivo. Então, é possível encontrar termos metafísicos tais como Purusha ou Paramatma traduzido por “Pai”, Atman traduzido por “Filho” e Brahma Shakti por “Espírito Santo”. Obviamente, o autor (ou autores) do Gita não tinha estas ideias em mente no momento da composição. Traduzir livros orientais com a terminologia cristã pode ter um bom efeito persuasivo sobre o leitor cristão, a fim de conciliar o Orientalismo com o Cristianismo, porém não corresponde à redação original do Gita, quando consultamos o texto sânscrito e a cultura hindu na época da composição. Infelizmente, não conheço uma tradução portuguesa que seja aconselhável para lhe indicar. O problema de divergências nas traduções não acontece apenas com o Gita, mas com quase todos os livros antigos, sobretudo os textos religiosos, os quais muitas vezes são traduzidos com interferência ideológica do tradutor, por isso as traduções acadêmicas são as mais mais próximas do original. Caso consiga ler em inglês, procure a tradução inglesa de Winthrop Sargeant, publicada pela State University of New York Press, disponível em e-book.
      Saudações.

    • Já li várias traduções do Bhagavad Gītā, acadêmicas e religiosas, TODAS, Krishna e Jesus falam do mesmo jeito, parece ser uma única pessoa falando. Detalhe: não são plágios. Não vi Pai, Espírito Santo e Filho em nenhuma delas. O que me refiro é o modo idêntico de falar e de se expressar idêntico.

  2. Cheguei aqui porque não sabia qual tradução comprar do Bagavad Gita. Texto bem oportuno. Ainda não me decidi mas duas traduções já foram descartadas por razões óbvias. Muito obrigada.

Deixe um comentário