Giordano Bruno, o Profeta “Errante” do Universo Infinito

por Octavio da Cunha Botelho

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O mais conhecido retrato  de Giordano Bruno (1548-1600).

            Quando nos aprofundamos nos estudos sobre Giordano Bruno, através das mais atualizadas pesquisas acadêmicas sobre a sua vida e a sua obra, podemos perceber o tanto que a versão popular difere do que os mais dedicados pesquisadores da atualidade concluem sobre ele. Em razão do seu comovente martírio, então católicos, esoteristas, anticatólicos e ateus interpretam e relatam a sua vida e o seu pensamento à sua maneira, filtrando e divulgando apenas aquilo que desejam que o público acredite. Às vezes, mitos sobre Bruno são inventados, a fim de aumentar a injustiça da sua condenação e da sua execução em 17 de fevereiro de 1600, no Campo dei Fiori, em Roma, e consequentemente, ampliar a comoção.

            Antes é preciso esclarecer que o estudo abaixo não procura depreciar o pensamento de Bruno como um todo, mas demostrar que, fora do contexto da cultura renascentista, suas concepções cosmológicas foram inúteis no futuro. Ao contrário, quando o situamos no Renascimento, ele foi um filósofo bem engajado no movimento renascentista. Por isso, para entender Bruno, é preciso primeiro conhecer a cultura renascentista.[1] Enfim, o estudo seguinte procura mostrar os graves problemas ocorrentes quando se conhece Giordano Bruno, apenas através das suas presunções cosmológicas aparentemente proféticas, ou seja, que o universo é infinito e que ao redor das estrelas orbitam planetas tal como o nosso Sistema Solar, excluindo assim uma enormidade de outras especulações fantasiosas, algumas até cômicas para o atual nível do conhecimento astronômico.

            Sendo assim, o estudo abaixo pretende informar e analisar, a partir das fontes originais, bem como mediante os trabalhos dos mais dedicados e esclarecidos pesquisadores acadêmicos da atualidade, quem foi o Giordano Bruno despido das exaltações, com base nas biografias que excluem o caráter hagiográfico[2] da sua vida, bem como quais foram as suas especulações cosmológicas, sem as interferências ideológicas dos expoentes deslumbrados com suas especulações visionárias.[3]  Também, apontar as supervalorizações dos seus admiradores que contrastam com as avaliações comedidas dos historiadores.

Introdução

            Quando uma espetacular descoberta acontece, sempre encontramos religiosos, místicos ou esoteristas ávidos em apontar autores religiosos que afirmaram ideia semelhante no passado, alegando que estes eram profetas, videntes ou visionários. Este está sendo agora o caso de Giordano Bruno (1548-1600), após a descoberta do primeiro exoplaneta (planeta orbitando uma estrela fora do Sistema Solar), em 1995, com confirmação pelo mais alto escalão da comunidade astronômica (ver: Frei, 2003; Mason, 2008 e Perryman, 2011). Pois, este filósofo renascentista extraiu, de autores do passado, a ideia de que as estrelas são sóis com planetas, tal como o Sistema Solar, orbitando ao seu redor. Daí lembramos daqueles títulos atribuídos a ele pelos seus admiradores: “Giordano Bruno, o Apóstolo da Teosofia no Século XVI” (Besant, 1913),[4] “O Filósofo do Infinito” (Miguel Ángel Granada), “O Mártir da Ciência” e “O Profeta do Universo Infinito” (Del Giudice, 2014).

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O ator Gian Maria Volonté no papel de Giordano Bruno, filme de 1973.

A autora Eva Martin reuniu os seguintes elogios de outros autores: “Um cometa que brilhou pela Europa”, “Esta chama reluzente de uma vida feroz” e “O brilho vermelho da pira funerária de Bruno foi a aurora rósea do pensamento moderno na Europa” (Martin, 1921: 07). A teósofa Annie W. Besant (1847-1933), autora de uma apologia muito lida pelos esoteristas, o chamou de “espírito feroz”, de “cavaleiro errante da filosofia” e de “alma ardente” (Besant, 1913: 05). Enquanto que, outros autores e biógrafos, desde uma perspectiva diferente, consideraram que ele era “um fracassado nas relações humanas, um desprovido de tato social e sabedoria mundana, e em tarefas práticas, um ineficiente em grau quase insano” (Bruno, 2002: xi).[5]

            O vislumbre e a presunção de fatos por especuladores podem ou não serem confirmados cientificamente no futuro. Veja o exemplo da admiração e da adoração do sol desde a Pré-história, quando quase todos os povos da Antiguidade tiveram uma forma de culto ao Sol, pois eles, desde tempos antigos, vislumbravam que sua luz e o seu calor eram indispensáveis para a vida na Terra, essenciais para a agricultura, para a manutenção da temperatura suportável, para a evaporação, etc. Com isso, desenvolveu-se uma forte admiração pelo sol, cujo status divino lhe foi atribuído, com nomes específicos em cada cultura (Hélio (Ηλιος), Sūrya (सूर्य), etc.), bem como, respectivos ritos de saudação foram criados e desenvolvidos para estes deuses (por exemplo: o Sūrya Namaskāra no Hinduísmo). No entanto, atualmente, nenhum povo esclarecido pratica estes cultos ao deus sol. Pois, o desenvolvimento do conhecimento científico e o aumento da capacidade de exploração espacial, revelaram que a natureza do sol é muito diferente daquela que os antigos vislumbravam, daí o encanto pelo sol desapareceu. Hoje sabemos que a natureza do sol não é tão divina, como imaginavam os antigos, pois ele é uma dentre as trilhões de estrelas existentes no universo, bem como um dentre outros tipos de estrelas (supernova, anã branca, pulsar, anã marrom, gigante vermelha, etc.), agora conhecemos a sua composição química, a sua idade, a sua distância da Terra, o seu fim e, o que é mais desmitificante, o seu caráter nocivo (explosões solares e raios ultravioletas). A rigor, grande parte do benefício do sol está na presença da Camada de Ozônio, como um filtro, sem esta a vida na Terra talvez não fosse possível. Então, hoje sabemos que devemos muito à Camada de Ozônio.

            Quanto ao sol, Giordano Bruno, por exemplo, imaginava “uma similaridade entre o Sol e a Terra, os quais eram compostos, embora em diferentes proporções, dos mesmos elementos”. Seguindo a convicção de Nicolau de Cusa (1401-1464), ele acreditava que “a Terra, a Lua e o Sol deveriam ser considerados luminosos” (Gatti, 1999: 119). Na Quarta Proposição do Terceiro Diálogo da obra La Cena de le Ceneri (A Ceia da Quarta Feira de Cinzas, 1584), ele afirmou que “em certa comparação, a Terra veria a ser tão quente quanto o Sol” (Bruno, 1972: 149). Alegações muitos distantes do que foi descoberto pelos astrônomos nos anos seguintes, portanto distantes de serem profecias.

            O estudo abaixo pretende mostrar um dentre muitos exemplos de vislumbres de especuladores do passado, que obtiveram confirmação de suas presunções e de suas superficialidades, mas discordaram em quase tudo em seus detalhes após o avanço do conhecimento científico. Isto é, Giordano Bruno, assim como outros pensadores antes dele, intuiu a possibilidade de cada estrela ser um sol com planetas orbitando ao eu redor, bem como a existência de um universo infinito, porém, quando consultamos os detalhes pelos quais ele explicou estas realidades, percebemos que quase tudo que ele explicou não foi confirmado nas pesquisas posteriores. Então, quando obtemos uma visão bem ampla da sua imensa obra, ele escreveu muito, foram cerca de 60 livros, alguns extensos, sobre cosmologia e astronomia foram quatro os principais, somos levados a pensar que ele, juntamente com outros autores anteriores, acertou a presunção do universo infinito e da existência de exoplanetas através de um golpe de sorte. Ou seja, escreveu tanto que pelo menos algumas poucas coisas ele teria de acertar, pois ele acertou somente nisto e errou em quase todo o restante da sua cosmologia.

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A teósofa Annie W. Besant (1847-1933) alegava ter sido Giordano Bruno em uma de suas encarnações anteriores.

           O que sustenta a admiração por estes vislumbres do passado é o hábito cultural de promover os acertos e os triunfos culturais e ignorar e desprezar os erros e os fracassos. Aquelas ideias acertadas de um autor são preservadas e elogiadas, enquanto as ideias não confirmadas são ignoradas e esquecidas. Veja o exemplo de Isaac Newton (1642-1727), ele é lembrado, venerado e ensinado nas escolas como o Pai de Física Clássica e o descobridor da gravidade, porém poucos conhecem os seus comentários sobre a Bíblia, bem como o seu interesse pela Alquimia e pela Magia. Este fato acontece com quase todos os autores do passado. Curioso também é o caso de Nicolau Copérnico (1473-1543), sua magna obra De Revolutionibus Orbium Coelestium (Sobre as Revoluções das Esferas Celestiais), uma das mais importantes obras da história, tão importante que deu início a Era Moderna ou Científica, obra na qual foi formulada a teoria heliocêntrica, uma revolução tão formidável que ultrapassou os limites da astronomia, para influenciar a nossa visão de mundo. Nesta obra ele elaborou a sua teoria heliocêntrica, porém acompanhada de muito mais ideias, em razão da limitação na capacidade de observação astronômica da época, que não tiveram confirmação astronômica no futuro. Então, aqueles que nunca leram o De Revolutionibus, mas ouviram falar de Copérnico, pesam que tudo na obra obteve confirmação científica posterior, mas não foi assim. Para fornecer apenas um exemplo, ele pensava que os planetas orbitavam o sol através de faixas orbitais suspensas no céu, as quais orientavam e sustentavam os planetas, tal como a concepção medieval, para que os mesmos não colidissem uns com os outros ou caíssem em função do peso, uma vez que a gravidade ainda não era conhecida. Giordano Bruno, que defendia a concepção heliocêntrica, mas a ampliou com o acréscimo de outras especulações, contestou esta ideia das faixas orbitais e elaborou uma outra teoria que também não foi confirmada.

A Comoção do Martírio

            Pela história percebemos que os personagens que sofreram martírio têm mais chances de serem proclamados heróis ou sábios, em função da comoção que o ato do martírio deixa na posteridade, do que aqueles que não se martirizaram. Além de comover, o martírio chama a atenção para o seu autor, colocando a sua vida, os seus atos e os seus pensamentos em destaque. Não resta dúvida que o Cristianismo se beneficiou, em seu crescimento, com a comoção do martírio de Jesus e o dos primeiros cristãos. Isto é o que aconteceu também com Giordano Bruno, sua popularidade se deve em grande parte em razão do seu martírio, uma vez que ele não se retratou diante do tribunal da Inquisição, com isso foi executado como herege na fogueira em 17 de fevereiro de 1600, na cidade de Roma. Uma de suas maiores admiradoras, a teósofa Annie W. Besant, o exaltou assim: “com suas palavras, ele foi capaz de vivificar a vida, com seu martírio, ele foi capaz de vencer a morte” (Besant, 1913: 05). Enfim, Giordano Bruno se martirizou para que sua filosofia sobrevivesse.

Um exemplo do maior poder do martírio em proclamar os seus autores, está no fato de que o teólogo Nicolau de Cusa (1401-1464) falou da infinitude do universo antes de Giordano Bruno, porém não foi proclamado “profeta do universo infinito”, por não ter sido martirizado (ver, Gatti, 1999: 119). E o que é ainda mais intrigante, mais de quinze séculos antes de Nicolau de Cusa e de Bruno, os epicuristas já falavam do universo infinito e dos outros mundos semelhantes à Terra. O livro De Rerum Natura de Lucrécio (96-55 a.e.c.) está repleto de menções aos outros mundos e ao universo infinito. No livro II, 1070, é mencionado claramente “…que em outras partes do universo existem outros mundos habitados por muitos diferentes povos e por espécies de animais selvagens” (Lucretius, 2001: 62; ver também: xxxiii, 35 e 173). Ainda antes de Lucrécio, Epicuro (341-271 a.e.c.), fundador da Escola Epicurista (Κήπο-Kepo; Jardim), falou da infinitude do universo e do número infinito de mundos.[6] Epicuro e Lucrécio tampouco foram proclamados “profetas do universo infinito”. Nas palavras de Karen Silvia de León-Jones: “Mais do que encerrar este episódio de heresia, a condenação de Bruno abriu o primeiro capítulo do mito do filósofo. Desde os contemporâneos de Bruno até os dias atuais, é comumente aceito que Bruno morreu porque ele se recusou a retratar suas crenças religiosas e filosóficas. Sua obstinada adesão à autoproclamada ‘Filosofia Nolana’ obteve a admiração de muitos nos séculos seguintes, juntamente com o desgosto de outros” (León-Jones, 1997: 02). Enfim, a proclamação de Bruno foi motivada pela comoção do seu martírio.

Sua vida comovente de martírio foi motivo de um filme de cinema com seu próprio nome, estrelado por Gian Maria Volonté, no papel de Bruno e direção do italiano Giuliano Montaldo, lançado em 1973. A versão em DVD lançada no Brasil foi publicada acompanhada da seguinte frase “A História de um Homem à Frente do seu Tempo”.  Esta é apenas uma frase elogiosa com o objetivo de promover o filme, pois, como veremos mais adiante, Bruno não foi um pensador com a visão voltada para o futuro, mas sim, muito pelo contrário, voltada predominantemente para as obras do passado, de onde ele retirou quase todas as suas ideias, por isso é considerado um renascentista.

Quando o Avanço está no Passado

            O próprio nome Renascimento já define o momento, trazer algo à vida novamente. Este foi o momento no fim da Idade Média, quando intelectuais e artistas voltaram as atenções para o passado clássico, a fim de buscar inspiração para suas ideias e para suas criações. O objetivo era resgatar a Idade de Ouro, sucedida pelas corrompidas Idades do Ferro e do Bronze. Para o renascentista, o passado era sempre melhor, e o presente era degeneração. Quanto às ciências e às filosofias, quanto mais antigas, mais sábias. Mergulhados, como estavam, em uma época (Idade Média) com poucos progressos no conhecimento, a solução foi buscar avanço recuperando as ideias do passado. Enfim, a cultura renascentista foi uma cultura retrospectiva.

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Estátua de Giordano Bruno erguida no Campo dei Fiori, Roma, local da sua execução em 17 de fevereiro de 1600.

            Giordano Bruno foi um exemplo por excelência deste período. Exceto as inovadoras ideias astronômicas de Copérnico e outras de poucos pensadores de gerações próximas (Marcílio Ficino, Pico dela Mirandolla, Nicolau de Cusa e Raimundo Lúlio), seu interesse estava em ideias antigas: Platonismo, Epicurismo, Neoplatonismo, Hermetismo, Pitagorismo, Cabala, Magia, Alquimia, Astrologia e outras antiguidades. Por não ser um pesquisador experimental, tal como Galileu, ele extraia suas conclusões através de deduções lógicas, com base em especulações dos autores antigos. Ele se considerava um filósofo. De modo que o seu raciocínio era coerente e brilhante, quando excluímos os trechos confusos das suas obras, mas suas conclusões inverificáveis experimentalmente nos anos seguintes com o despertar do interesse pela experimentação científica. Por não ter deixado contribuições no campo da ciência e poucas na área da filosofia (somente algumas entre os romancistas), em razão das suas especulações dedutivas, Bruno foi admirado, e ainda é, apenas pelos esoteristas.

            A rigor, a única contribuição para a posteridade que Bruno deixou não está no valor das suas ideias, mas sim no valor do seu espírito, isto é, na sua inflexível abdicação da liberdade de pesquisa e de expressão, o que o levou a recusar a retratação, durante o seu julgamento em Roma, por isso foi condenado e executado. Este foi o legado de Giordano Bruno que ainda aproveitamos hoje: a sua implacável luta pela autonomia da pesquisa e pela liberdade de expressão. Hilary Gatti colocou esta ideia da seguinte maneira: “Sua insistência (de Bruno) em colocar esta questão (do livre pensamento e da liberdade de expressão) no centro de ambas, (isto é) de suas obras e de sua defesa, é o motivo porque Bruno permaneceu como uma figura do mundo moderno” (Gatti, 1999: 19).

A Vida Errante   

            O adjetivo errante possui dois significados, o de “aquele que erra”, “aquele que se engana” ou um segundo significado de “aquele que não tem residência fixa”, “nômade”, “itinerante”. Deriva do Latim errāns (errante), do verbo latino errāre, “errar”, “andar ao acaso”, “afastar do caminho”, “desviar”, “se perder”.

Coincidentemente, a vida de Bruno incorpora estes dois significados, pois ele foi um errante que perambulou de cidade em cidade, tal como um nômade, na tentativa de ensinar suas ideias, mas era sempre excomungado ou expulso por aqueles que não as aceitavam; bem como foi um errante no sentido de que quase todas as suas ideias retrospectivas não foram reconhecidas posteriormente, portanto entendidas em conjunto como um erro, uma vez que foram divulgadas às vésperas de uma das maiores mudanças na história do pensamento da humanidade: a Revolução Científica.

A exaltação de alguns admiradores de que Giordano Bruno foi, juntamente com Nicolau de Cusa, o mais importante filósofo do Renascimento, ou que ele foi um “pensador iluminado e coerente”, bem como um “gigante do pensamento” (Del Giudice, 2014: 03), soa como superestimações nos ouvidos de outros historiadores da filosofia. Pois, ele nem sequer é mencionado em alguns livros sobre o Renascimento (Hunt, 2005 e Brotton, 2006). Em algumas enciclopédias e em alguns dicionários de filosofia, ele aparece apenas em verbetes curtos, com no máximo dois parágrafos (Audi, 1999: 103 e Streissguth, 2008: 58), em comparação com outros filósofos com verbetes bem mais extensos. Já a Cambridge History of Renaissance Philosophy, uma obra com 930 páginas, dedicou apenas três páginas para Bruno (Schmitt et. al., 2008: 254-6). No capítulo The Philosophy of the Italian Renaissance (A Filosofia do Renascimento Italiano), por Jill Kraye, na Routledge History of Philosophy, volume IV, The Renaissance and 17th Century Rationalism, Kraye tratou de Bruno em apenas três parágrafos, com a seguinte conclusão: “Algumas ideias de Bruno tiveram uma limitada influência após sua execução, mas sua filosofia nunca obteve um séquito amplo” (Kraye, 2005: 45). Karen Silvia de León-Jones também observou: “Razoavelmente ignorado pelos filósofos oficiais do Iluminismo (sua obra estava e está, afinal de contas, no Index de Livros Proibidos), seu nome foi sussurrado, mas não citado” (León-Jones, 1997: 02).

Estritamente falando, o séquito de Giordano Bruno sobrevive no meio esotérico, isto é, entre os rosacruzianos, os teósofos e os maçons. Estes, com sua frequente tendência de encontrar a sabedoria nas especulações e nas práticas do passado, alegam que Bruno era um iniciado nos mistérios antigos. Enfim, Bruno é importante apenas como um especulador renascentista, e não como um filósofo ou um cientista com um influente legado para a posteridade, tal como Nicolau Copérnico, Galileu, Descartes, Johannes Kepler, Isaac Newton e Francis Bacon foram para o futuro da filosofia e da ciência.

Que Bruno era um encrenqueiro, ele mesmo reconhecia, pois na página frontal de sua obra Candelaio (O Portador da Vela), de 1582, ele referiu a si mesmo como “Bruno Nolano, Academico di nulla Academia, detto il Fastidio” (Bruno de Nola, Acadêmico de nenhuma Academia, conhecido como o Aborrecimento). Ou seja, ele mesmo se considerava um “chato”.

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Relevo reproduzindo  o julgamento de Giordano Bruno.

Giordano Bruno nasceu em San Giovanni del Cesco, perto de Nola, no reino de Nápoles, local sob o domínio espanhol naquela época, no ano de 1548.  Por isso a razão de ser conhecido como o filósofo nolano, ele mesmo se autodenominou nolano em seus escritos. Seu nome de batismo era Felipo, provavelmente em honra do herdeiro do trono da Espanha, o nome Giordano lhe foi dado quando ingressou no convento dominicano de San Domenico Maggiore, na Ordem dos Pregadores, em 1565. Foi ordenado padre em 1573 e, neste ano, celebrou sua primeira missa.

   Seu temperamento irreverente se manifestou logo no início, quando decidiu retirar do seu aposento as imagens dos santos, conservando apenas o crucifixo, também, a sua sugestão para um noviço de substituir a leitura de um texto da Virgem Maria pela leitura das Vidas dos Santos Padres, lhe custou a primeira denúncia, a qual, desta primeira vez, não progrediu. Em 1572, falou de suas dúvidas sobre a Trindade e defendeu a posição de Ario (teólogo contrário à concepção da Trindade, que foi repudiado nos primeiros concílios) de que ela não era tão perniciosa como se pensava. Com isso foi denunciado em 1575. Em fevereiro de 1576, Bruno fugiu para Roma, onde obteve a notícia que, depois de sua fuga, se descobriu que ele havia lido as obras proibidas de Erasmo, bem como a acusação de ter assassinado e jogado em um rio um companheiro da Ordem que o havia denunciado. Mas a acusação do assassinato não foi confirmada. Então, fugiu de Roma para o norte da Itália, onde andou errante por diversos lugares, sempre tentado lecionar (Benavent, 2004: 12 e Blum, 2012: 09).

Depois de passar por Lion e Toulouse, chegou na cidade de Paris em 1581, onde chamou a atenção dos círculos intelectuais em torno do rei Henrique III por sua formidável memória. Ali encontrou o ambiente aberto que procurava, então, no ano seguinte, 1582, publicou sua primeira obra, De Umbris Idearum (Sobre as Sobras das Ideias), um tratado sobre mnemônica. Quando tudo parecia bem em Paris, conflitos religiosos surgiram e o nolano se dirigiu à Inglaterra em abril de 1583.

Com a ajuda do embaixador francês em Londres, Bruno conseguiu ser introduzido no meio intelectual e de ingressar na Universidade de Oxford como participante nas disputas acadêmicas. Depois conseguiu uma nomeação para proferir uma série de lições em Oxford. Porém, estas tiveram uma consequência desastrosa. Bruno foi acusado de plagiar Marcilio Ficino, com isso as lições foram bruscamente interrompidas. O filósofo nolando, por sua vez, considerou os acadêmicos de Oxford como pedantes e os satirizou no quarto diálogo da sua obra italiana La Cena de le Ceneri (A Ceia da Quarta Feira de Cinzas), publicada logo em seguida, 1584. Para escrever este diálogo, Bruno, que já havia regressado à Londres, se inspirou em uma reunião de debate, a convite de sir Fulke Greville, a fim de discutir a sua versão de Copérnico. A discussão aconteceu na residência de F. Greville, na tarde de uma Quarta Feira de Cinzas, onde debateram Bruno e dois doutores de Oxford, estes últimos defendiam a cosmologia aristotélica-ptolomaica da Terra imóvel e central. No entanto, a discussão terminou bruscamente e de maneira pouco cordial.

No mesmo ano de 1584, Bruno publicou mais três textos cosmológicos na forma de diálogos em italiano: De la Causa, Principio et Uno (Sobre a Causa, o Princípio e a Unidade), De L’infinito Universo et Mondi (Sobre o Universo Infinito e os Mundos) e Spaccio de la Bestia Trionfante (A Expulsão da Besta Triunfante).

Com o agravamento das relações entre Inglaterra e França, o embaixador francês em Londres, que protegia Bruno, foi chamado de volta à Paris e o filósofo nolano o acompanhou. Bruno chegou, pela segunda vez, em Paris no final de 1585 e encontrou uma atmosfera muito diferente daquela de deixou na primavera de 1583. Logo, como sempre, Bruno criou um desentendimento com o geómetra de Salermo, Fabrizio Mordente, quem havia construído um compasso capaz de medir pequenas frações. Inicialmente, Bruno teve uma relação amistosa com o geómetra no início, mas depois começou a se desentender com ele, com isso passou a apresenta-lo como um ”ignorante que não sabia o que tinha entre as mãos e ignorante das profundas implicações da sua invenção”. Pois, Bruno conjecturava que o compasso era capaz de provar que a matéria tem um mínimo, isto é, o átomo, e com isso contestar a concepção aristotélica de que a matéria não possui um elemento mínimo, porém, Mordente não concordou com isto. Em um diálogo publicado em 1586, ele o chamou de “Idiota Triumphans” (O Idiota Triunfante).

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Bruno aceitou a concepção heliocêntrica de Copérnico, mas a modificou nos detalhes.

Logo em seguida, Bruno se envolveu em outra complicação, ao preparar uma tese para uma disputa pública no Colégio de Cambrai, da Universidade de Paris, onde costumavam lecionar os professores reais. No dia da disputa, o porta voz de Bruno, seu discípulo Jean Hennequin, foi contestado por um adversário que defendeu Aristóteles, se tratava de Roger Callier, um advogado vinculado ao grupo dos políticos próximos ao rei. A disputa terminou em uma briga geral e, poucos dias depois, Bruno, convencido de haver perdido o apoio do partido real, além de pender sobre ele a ameaça do recurso de Mordente ao partido ultracatólico, partiu para a Alemanha.

Ao chegar lá, inicialmente perambulou por algumas cidades sem conseguir emprego, finalmente conseguiu uma nomeação na Universidade de Wittenberg para lecionar a lógica de Aristóteles e outras matérias filosóficas. Na cidade de Lutero, o nolano permaneceu por um ano e meio, quando teve a oportunidade de publicar mais algumas obras de sua autoria. O ambiente estava bom até a chegada, na região, do novo duque de filiação calvinista, com isso a facção calvinista colocou fim à tolerância que os luteranos haviam mantido, Então, Bruno deixou a universidade em março de 1586, com um Discurso de Despedida (Oratio Valedictoria), no qual, como de costume, incluiu os seus habituais insultos aos “sujeitos que não eram homens, no sentido estrito da palavra, senão bestas pelo nível de conhecimento que manifestavam sob a aparência humana”.

Daí Bruno se dirigiu à Praga, atraído pela figura do imperador Rodolfo II, cujo patrocínio intelectual e interesse pela nova filosofia, assim como a perspectiva religiosa aberta e irenista, eram muito conhecidos. Bruno aproveitou para publicar mais alguns de seus trabalhos, conseguiu até uma doação em dinheiro do imperador, em troca da dedicatória ao imperador em suas obras, mas foi só isto. De Praga ele foi para Helmstedt, onde foi excomungado pelo pastor da igreja luterana local.

De Helmstedt, Bruno foi para Frankfurt no começo de 1590. Aí ministrou aulas particulares e adquiriu a reputação de “homem que não tinha uma religião”. O senado local recusou a solicitação de alojamento na residência do editor Johann Wechel, o que equivalia a uma ordem de expulsão da cidade. Então, Bruno se hospedou no convento dos dominicanos, com a ajuda do seu editor. Devido à ordem de expulsão, Bruno foi para Zurique, onde lecionou para um grupo de jovens doutores lições de filosofia escolástica que, mais tarde, em 1595, quando já estava preso, foram publicadas com o título de Summa Terminorum Metaphysicorum (um pequeno dicionário de termos metafísicos com comentários). Depois regressou à Frankfurt a fim de publicar mais dois poemas latinos.

Então, surpreendentemente, recebeu um convite de um patrício veneziano, Giovanni Mocenigo, a quem havia chegado a fama da sua memória eficaz e prodigiosa, para hospedar-se em sua mansão em troca do ensino dos segredos desta arte. Bruno decidiu regressar à Itália, o que a maioria dos seus biógrafos considerou uma imprudência. Porém, antes de se dirigir à Veneza, Bruno se dirigiu para Pádua, na esperança de conseguir uma cátedra na universidade local. Enquanto isto, ministrou algumas lições particulares a um grupo de estudantes alemães. Ele foi ajudado por um ex-aluno, Besler, agora professor na Universidade de Pádua, porém, com o regresso deste último à Alemanha em novembro de 1591, frustraram-se as tentativas de Bruno de lecionar na universidade. Por fim, Bruno foi obrigado a aceitar o convite de Mocenigo.

Bruno se instalou finalmente na mansão do patrício veneziano em março de 1592, a fim de lhe ensinar a arte da memória. No entanto, Mocenigo passou a se descontentar com os ensinamentos que havia recebido de Bruno, pensando que este lhe escondia os segredos mais importantes. Então, quando Bruno lhe pediu permissão para ir à Roma, a fim de publicar mais algumas de suas obras, Mocenigo desconfiou que ele pretendia fugir, daí o prendeu em sua mansão em 22 de março de 1592 e, em seguida, o denunciou à Inquisição veneziana (Benavent, 2004: 26 e 85).

O Processo e a Condenação

            Giovanni Mocenigo denunciou à Inquisição veneziana as seguintes declarações de Bruno:

  • Que ele não gostava das religiões
  • Que ele havia negado a transubstanciação
  • Que ele se opunha à missa
  • Que Cristo era um sedutor e um mago, e que seus milagres foram meramente aparentes
  • Que em Deus não havia distinção de pessoas
  • Que havia afirmado a eternidade dos mundos e a existência de mundos infinitos, a existência da transmigração da alma e outras heresias (Benavent, 2004: passim).[7]

Neste inicial processo veneziano, Bruno se mostrou disposto a reconhecer os seus erros, por isso se retratou em 03 de junho de 1592.

No entanto, a notícia da sua prisão e do processo veneziano chegou até a Inquisição de Roma em setembro de 1592, a qual solicitou a extradição do mesmo, alegando que Bruno era de Nápoles, e não de Veneza. Ademais, que já existiam dois inquéritos instaurados contra ele, um em Nápoles e outro em Roma, os quais ainda não estavam concluídos. Depois de alguma resistência, o estado de Veneza concedeu a extradição em fevereiro de 1593. Então, Bruno foi transferido para Roma e encarcerado na prisão do Santo Ofício Romano em 27 de fevereiro de 1593.

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Epicuro (341-271 a.e.c.) falou sobre a infinitude do universo e de outros mundos muitos séculos antes de Bruno.

O processo romano durou sete anos, atravessando distintas fases. Logo em seguida, as acusações se agravaram com a chegada em Roma das declarações de um dos seus companheiros de cela durante o período do processo veneziano. Outro agravante aconteceu quando o Tribunal Romano decidiu proceder a censura das obras brunianas e, então, em março de 1597, entregou para Bruno uma lista de oito proposições heréticas extraídas dos seus livros, as quais ele deveria se retratar.

Em virtude da perda das atas do processo, durante a transferência no tempo das guerras napoleônicas, atualmente as informações sobre o processo são extraídas do Sommario del Processo,[8] publicado em 1942, os quais reúnem um resumo das respostas de Bruno e permite identificar as teses incriminativas. Alguns estudiosos sugerem que as oito proposições eram:

  • Manutenção de opiniões contrárias à Fé Católica e declarações contra ela e seus sacerdotes
  • Opiniões contrárias à Fé Católica sobre a Trindade, a divindade de Cristo e a Encarnação.
  • Opiniões contrárias à Fe Católica relativas a Jesus como Cristo
  • Opiniões contrárias à Fé Católica quanto à virgindade de Maria, a mãe de Jesus
  • Opiniões contrárias à Fé Católica sobre a Transubstanciação e a Missa
  • Alegação da existência de uma pluralidade de mundos e sua eternidade
  • Crença na metempsicose e na transmigração dos homens em animais
  • Envolvimento com magias e adivinhação.

O Tribunal exigia de Bruno, em última instância, a sua retratação como filósofo, o reconhecimento da superioridade da teologia sobre a filosofia, a aceitação de que a teologia (e não a filosofia) era a instância depositária e definidora da verdade, inclusive em questões filosóficas. Exigia também sua renúncia à filosofia, bem como a sua concepção copernicana do universo infinito e sua relação com a divindade.[9]

A recusa em retratar-se, pois Bruno disse que “não devia nem queria se arrepender, não tinha do que se arrepender e não sabia do que devia se arrepender”, por isso foi sentenciado à morte na fogueira, pelo Tribunal da Inquisição de Roma, em 20 de janeiro de 1600. A execução aconteceu no Campo dei Fiori, Roma, em 17 de fevereiro de 1600. Durante a leitura da sua sentença condenatória, diante do Tribunal da Inquisição, depois que o papa Clemente VIII ordenou que fosse condenado como herege obstinado, impenitente e teimoso, ele proferiu a memorável frase diante dos seus acusadores, que tanto comove os seus admiradores: “Vós pronunciais contra mim a sentença com mais temor do que eu sinto ao ouvi-la” (Gatti, 1999: 18).

A sua condenação se estendeu também para a sua obra, todos os seus livros que estavam em poder do Santo Ofício e os que vieram a serem obtidos depois deviam ser queimados na praça de São Pedro, e incluídos no Índice de livros proibidos. A inclusão aconteceu em agosto de 1603 mediante um edito do ministro do Sagrado Palácio. A proibição se repetiu em todos os índices publicados posteriormente até o século XX, embora não tenha impedido completamente a circulação de cópias clandestinas, sobretudo nas regiões com maior influência protestante. No século XIX, aconteceu a ressurreição das obras de Bruno mediante as primeiras edições completas das suas obras italianas e latinas (as que sobreviveram).

Extratos das Hagiografias

            Os relatos e as avaliações dos hagiógrafos sobre Bruno diferem consideravelmente daqueles dos biógrafos. Por exemplo, a teósofa Annie W. Besant, autora de uma hagiografia muito lida pelos esoteristas, acreditava que as ideias de Bruno eram inatas nele, pois ele tinha passado pelas experiências de diversas reencarnações e que tinha sido Pitágoras em uma das vidas anteriores: “Estas ideias eram inatas em Bruno, o fruto de uma longa série de vidas em que ele tinha conhecido o grande Ser encarnado como Pitágoras, e estas ideias inatas se transformaram rapidamente em linguagem articulada tão logo ele estudou as ideias de Copérnico” (Besant, 1913: 08). Esta autora também acreditava na permanência e, até mesmo, na atualidade das ideias retrospectivas de Bruno: “a tese rejeitada no século XVI está sendo avidamente aceita no século XX”. “A mensagem abafada pela fumaça do seu martírio está soando através da Europa agora”. “Sua voz morreu na sua garganta, mas ela está agora ecoando em torno de nós, pois saber morrer em um século é viver por todos os próximos séculos”. “Seus pensamentos tomaram o rumo da imortalidade, e eles estão se espalhando pelo mundo moderno, eles são a Teosofia” (Besant, 1913: 10). Nesta última frase está o exemplo de que as especulações retrospectivas de Bruno agradam apenas aos esoteristas.

            Outra hagiografia elogiosa é de Guido del Giudice, escrita para o agrado dos rosacrusianos e dos esoteristas em geral. Omitindo os muitos relacionamentos desastrosos de Bruno, tal como vimos antes, bem como selecionando apenas as suas ideias razoavelmente aceitáveis e as revestindo com aparência de atualidade, ele considerou que “Giordano Bruno foi um pensador genial, antecipado para o seu tempo, ao ponto de ser considerado como um daqueles ‘Mercúrios’ enviados à Terra em momentos preestabelecidos, inspirado de uma visão profética acerca da humanidade e do universo”. Mais adiante ele acrescentou que Bruno “era um homem que conhecia o seu próprio valor e respeitava o dos demais…” (Del Giudice, 2014: 02). Mais adiante ainda, ele observou que as ideias de Bruno “repousam sobre o fundamento da sua mera intuição, por acaso genial, porém não aceitável para o emergente espirito cientifico, por causa de uma ‘matematização’ ausente. Porém, aqui se encontra propriamente a grandeza de Bruno, o que faz dele um verdadeiro e certo profeta, o fascinante de uma personalidade complexa, o culto de magia natural, de mnemotécnica, toda atividade evocadora e precursora do desenvolvimento moderno”. “Também, que “seu espírito não era o de um mártir, senão o de um pensador iluminado e coerente, delicado ao extremo” (idem: 03). E que “Bruno é um grande sensitivo” (idem: 17).

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O papa Clemente VIII condenou e ordenou a execução de Giordano Bruno em 20 de janeiro de 1600.

            Os contrastes destes elogios com os relatos e as avaliações de outros autores e biógrafos podem ser percebidos nas seções anteriores deste estudo, portanto um comentário agora seria repetitivo. Agora, o que chama mais a atenção dentre estes elogios selecionados acima é a afirmação de que Bruno “conhecia o seu valor e respeitava o dos demais”. Ora, o que extraímos dos seus textos e das suas biografias é o contrário, ele era um insubordinado e um encrenqueiro que denominou a sim mesmo como “Fastidio” (Aborrecimento). Em seus diálogos, era frequente ele desacatar os demais, uma das ofensas era se dirigir ao interlocutor como “burro” (Latim: asĭnus – Italiano: asino). Também, muito do seu temperamento desrespeitoso e debochado pode ser percebido nos depoimentos dos seus companheiros de cela (Benavent, 2004: passim). O excessivo auto reconhecimento do seu valor o levou à soberba, tal como veremos na seção seguinte.

            Estes são apenas alguns poucos extratos elogiosos escritos por esoteristas, se incluirmos todos os elogios, este estudo se tornaria muito extenso.

A Filosofia Errante

            Em uma das seções anteriores mostramos a vida errante de Bruno no sentido de vida nômade, itinerante, cuja permanência era muito curta em cada lugar no qual se estabelecia. De agora em diante falaremos do seu pensamento errante, no sentido de pensamento errôneo, ou seja, que comete enganos, uma vez que as suas concepções foram pouco aproveitadas pelas gerações seguintes.

Sem constrangimento e modéstia, Bruno se considerava destinado pela alta divindade a ser o profeta de uma época melhor que começava. Também, ele pensava que estava iniciando uma nova época que colocava fim a um período histórico dominado por dois arautos: Aristóteles e Cristo. Ele acreditava firmemente que iniciava uma era melhor, cuja filosofia autêntica retornava, como um empreendimento intelectual e própria de personalidades superiores, diante da sua substituição, no período precedente, por uma pseudofilosofia, ou filosofia vulgar, que havia usurpado o nome de filosofia, e aberto o caminho da redução da filosofia e da ciência à mera servente da teologia e da religião, em virtude da necessidade, de todos os homens, da fé em Cristo como a única possibilidade de salvação.

            Nos depoimentos de Giovanni Mocenigo e de companheiros de cela, eles relataram que Bruno “tinha a intenção de se converter em autor de uma nova seita com o nome de nova filosofia” (Benavent, 2004: 31 e passim). Enfim, Bruno se considerava autor de uma missão grandiosa.

            Que uma nova era se iniciou logo após a morte de Bruno, a história confirmou esta transformação, qual seja, a Revolução Científica, porém de uma maneira e com base em investigações muito diferentes daquelas conjecturadas por Bruno. Enfim, após Bruno, o pensamento mudou, mas não da maneira que ele imaginou.

A Cosmologia Errante

            Bruno escreveu muitas obras, foram cerca de 60 publicações (León-Jones, 1997: 02 e 255-6), sendo que apenas algumas foram traduzidas para outras línguas (as mais importantes), publicadas em diversos locais, porém algumas poucas não sobreviveram. Ele tratou de incontáveis assuntos, de modo que cada intérprete pode enfatizar mais um assunto que outros e, com isso, interpretar que ele foi mais um mago hermetista do que tudo mais (Frances A. Yates), que ele manteve contatos secretos com membros da Fraternidade Rosacruz (Guido del Giudice), que ele foi um teósofo do século XVI (Annie W. Besant), um cientista eclético, um profeta, um alquimista, um astrônomo, um filósofo natural, um mestre de mnemônica ou aquilo que parece ser o mais sensato sobre ele: um filósofo renascentista bem inserido no Movimento Renascentista. Enfim, exceto os acadêmicos com visões globais, muitos autores, sobretudo os esotéricos, arrastam Giordano Bruno para o seu lado e o divulgam extraindo apenas a parte que lhes interessa.

Aqui neste estudo sobre a cosmologia de Bruno, importam as suas obras cosmológicas italianas em forma de diálogo: La Cena de le Ceneri (A Ceia da Quarta Feira de Cinzas), De la Causa, Principio et Uno (Sobre a Causa, o Princípio e a Unidade), De L’infinito Universo et Mondi (Sobre o Universo Infinito e os Mundos) publicadas em 1584, na cidade de Londres. E a em Latim: De Innumertabilibus, Immenso et Infigurabili (Sobre as Coisas Inumeráveis, a Imensidão e as Coisas Informes), publicada em 1591. Estas são aquelas obras de Bruno onde ele mais tratou da tese sobre o universo infinito e sobre os incontáveis mundos habitados orbitando ao redor de estrelas, concepções que tanto comovem os seus admiradores, até os dias de hoje, ao ponto de proclamá-lo “profeta do universo infinito”. Entretanto, no estudo seguinte, iremos mostrar, a partir de um aprofundamento em suas obras mais astronômicas, o tão pouco que Bruno acertou e o imenso tanto dos detalhes destas teses que não foi confirmado pelas pesquisas astronômicas posteriores. Pois, ele não pronunciou estas teses simplesmente, mas as complementou com muitas conjecturais explicações astronômicas.

Giordano Bruno viveu em uma época quando ainda não existiam os instrumentos de observação astronômica (lunetas, telescópios, radiotelescópios, sondas espaciais, telescópios orbitais [Hubble], observatórios espaciais, robôs de exploração planetária, etc.), por isso ele valorizava muito o conhecimento extraído do raciocínio dedutivo. Por não existirem ainda os instrumentos de observação para grandes distâncias, a luneta estava prestes a ser utilizada por seu contemporâneo, Galileu, como também não lhe agradava o uso da matemática nos cálculos físicos, ele valorizou as suas deduções extraídas do limitado conhecimento astronômico através da observação a olho nu do céu disponível na época. Então, ele chegou a afirmar, através do seu alter ego, Filoteu,[10] no início do primeiro diálogo da obra De L’infinito, Universo et Mondi (Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos) que “é o intelecto a quem convêm julgar e dar razão das coisas distantes e separadas de distância de tempo e intervalo de espaço” (Bruno, 1993: 102 e Liaño, 2007: 168). Obviamente, Bruno não imaginava a sofisticação dos instrumentos que seriam inventados no futuro.

A Astronomia Errante

A fim de entender a cosmologia de Bruno, é preciso conhecer o conceito de mundo na sua época. Mundo não significava apenas a Terra, mas o perfeito conjunto que inclui a Terra, a Lua, o Sol, os planetas e as estrelas, pois tudo isto era criação de deus, portanto uma criação perfeita e harmônica, uma vez que deus não criou coisa alguma imperfeita, então tudo isto estava incluído na perfeita criação divina. Visto que isto era tudo que se conhecia do universo, através da observação do céu sem instrumentos de aumento, de maneira que não se conhecia alguma região no universo que fosse imperfeita, desarmônica ou caótica, portanto tudo no mundo era a perfeição de deus.

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A concepção geocêntrica do universo na época de Bruno.

Bruno, que era um especulador que acreditava na criação do mundo por deus, imaginou a existência de outros mundos semelhantes ao modelo do nosso mundo com sol, planetas, luas e estrelas, tal como o Sistema Solar, pois se o mundo é a criação de deus, outros mundos também seriam criações de deus, portanto perfeitos e semelhantes ao nosso, nunca caóticos e imperfeitos. De modo que outros mundos só poderiam ser semelhantes à perfeição do nosso mundo, deus nunca faria algo incompleto e imperfeito. Nas palavras de Bruno: “… porque a bondade deste ser corpóreo (deus) que se encontra neste espaço (nosso mundo) ou poderia se encontrar em outro espaço (mundo) igual a este, demonstra e reflete a bondade conveniente e a perfeição que se pode fazer em tal e tão grande espaço (mundo) como este (nosso) ou outro igual a este (nosso mundo) …” (Bruno, 1993: 109). Enfim, se deus foi capaz de criar um mundo tão perfeito como o nosso, seria também capaz de criar infinitos outros mundos perfeitos iguais ao nosso. Por isso Bruno concluiu: “Portanto, não está menos bem que existam (tal como podem existir) inumeráveis mundos semelhantes a este …” (idem: 111). O que os astrônomos já sabem atualmente é que estes outros mundos são muitos diferentes do nosso, pois já foram descobertos até exoplanetas que não orbitam estrelas, conhecidos por exoplanetas órfãos ou por exoplanetas nômades, os quais foram expulsos de seus sistemas solares em função de algum conflito gravitacional (para conhecer o que se sabe sobre os exoplanetas, ver: Frei, 2003; Mason, 2008 e Perryman, 2011).

Na Quarta Proposição de Nundinio, no Terceiro Diálogo, de La Cena de le Ceneri (A Ceia da Quarta Feira de Cinzas), Bruno comparou a Terra com os outros globos: “… os demais globos, que são terras, não são em ponto algum diferentes deste (nosso globo) em espécie …” (Bruno, 1972: 149). Em seguida, ele fez uma especulação estranha sobre a Terra: “… sendo a terra um animal, e por consequência um corpo dissimular, deva ser estimada como um corpo frio por algumas partes, especialmente externas, ventiladas pelo ar; que por outros membros, que são os mais em número e em tamanho, deva ser acreditada como quente e quentíssima …”. Mais adiante ele conjeturou que “… a terra veria a ser tão quente quanto ao sol”. Na Terceira Parte do Segundo Diálogo do livro Spaccio de la Bestia Trionfante (Expulsão da Besta Triunfante), Bruno conjecturou que os outros mundos eram tão iguais aos nosso que até a Ética seria semelhante: “… a Ética por conta dos costumes, das condutas, das leis, das justiças e dos delitos podem existir neste e em outros mundos do universo” (Bruno, 1991: 155).

Em virtude do desconhecimento da existência da gravidade, Bruno imaginava que os astros se moviam impulsionados pela alma, por isso conjeturou que “toda coisa vai de encontro do seu semelhante e foge do contrário”, então ele concluiu que “A terra e os demais astros se movem, portanto, segundo suas próprias diferenças locais de seu princípio intrínseco, que é a sua própria alma”. Ademais, propôs que a alma dos astros é mais inteligente que a nossa: “a alma não é apenas sensitiva, mas também intelectiva, não só intelectiva como a nossa, senão talvez ainda mais (intelectiva)” (idem: 152). No diálogo De l’infinito, Bruno reforçou a conjectura de que os corpos se movem impulsionados pela alma: “… sendo infinitos os mundos contidos nele (no universo), como são as terras, os fogos[11] e outras espécies de corpos chamados astros, todos se movem em virtude de seu princípio interno que é a própria alma. (…) por isso é inútil andar buscando seu motor externo”.[12] Em seguida que “a terra gira em torno ao próprio centro de várias maneiras[13] e em torno do sol em virtude de seu instinto animal interno” (Bruno, 1993: 124).

No final do Primeiro Diálogo da obra De l’infinito, Bruno forneceu outra confusa especulação sobre o movimento de rotação da Terra, tão confusa que ele utilizou um desenho para explicar, cujo movimento não é contínuo, mas sim em forma de ‘vai e volta’: “por isso, em um só instante se vai e volta, e como está sempre assim, ocorre que está sempre imobilíssima” (Bruno, 1993: 126). A passagem é tão estranha que a tradução espanhola de Ignacio Gómes de Liaño omitiu este trecho (Liaño, 2007).

Logo no segundo parágrafo do Segundo Diálogo da obra De L’infinito, Bruno emitiu mais uma estranha conjectura sobre a relação de certos objetos com o infinito: “se vemos que um corpo tem capacidade de crescer até o infinito em quanto à sua qualidade corporal, tal como se vê no fogo, o qual (segundo tantos admitem) cresceria até o infinito se o aproximara matéria e alimento. Por que razão o fogo, que pode ser infinito e, por conseguinte, pode ser feito infinito, não pode ser infinito em ato? (Bruno, 1993: 130). Hoje sabemos que o fogo não tem capacidade de expansão até o infinito, uma vez que, para tanto, o fogo precisa de oxigênio, o qual se encontra apenas na atmosfera. No vácuo, o qual ocupa a quase totalidade do universo, não existe oxigênio em abundância, portanto o fogo não consegue se expandir. Talvez Bruno e muitos outros pensavam assim em razão do fogo do sol, sem saberem que o sol arde pelo processo de fusão nuclear interna, o qual ainda não era conhecido na época, e não pela combustão de algum alimento (combustível) externo.

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Frances A. Yates (1899-1981), autora de Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (1964), o livro mais lido sobre Bruno, o que consolidou a sua imagem de mago renascentista. Hoje esta ênfase é contestada por alguns estudiosos.

Mais adiante, no mesmo diálogo, Bruno citou Epicuro e os estoicos, confirmando assim que estes já falavam de um universo infinito e da existência de outros mundos muito antes (idem: 132). Seguindo o mesmo raciocínio de outras passagens sobre a semelhança dos outros mundos com o nosso mundo, Bruno reforçou que: “Dizemos assim que existe um infinito, é dizer, uma imensa região etérea, na qual existem inumeráveis e infinitos corpos, como a terra, a lua e o sol, aos quais chamamos mundos compostos de cheio e de vazio, porque este espírito, este ar, este éter[14] não só existem ao redor destes corpos, senão que penetra também dentro de todos eles e resulta inerente a toda coisa (idem: 132). Da mesma maneira que Bruno imaginava que a Terra, a Lua e os outros planetas do nosso Sistema possuem espíritos, ele também imaginava que os corpos dos outros mundos também os possuíam. Ademais, tal como o nosso mundo possui ar, ele imaginava que todos os outros corpos celestes também possuíam atmosfera como a nossa Terra. Também, no Quinto Diálogo de La Cena de le Ceneri, Bruno acrescentou outros pensadores do passados que acreditavam na infinitude do universo: “Heráclito, Epicuro, Pitágoras, Parmênides e Meliso (…) reconheciam um espaço infinito, uma região infinita, matéria infinita, capacidade infinita de mundos inumeráveis semelhantes a este…” (Bruno, 1972: 197).

Bruno afirmou também que as estrelas realizam giros, e que nós não os vimos em função da distância (Bruno, 1972: 196). Muito provavelmente, um admirador de Bruno diria que ele profetizou a existência das Estrelas Binárias e das Estrelas Múltiplas, que são sistemas estrelares cujas estrelas orbitam ao redor de um centro de massa comum, com isso realizam giros, os quais só começaram a ser observados, através de telescópios, a partir do século XIX. O fato é que, já foram descobertas tantas espécies diferentes de estrelas, com os movimentos mais estranhos que, qualquer afirmação que um desinformado diga sobre as estrelas é capaz de coincidir com a forma ou com o comportamento de algumas estrelas existentes.

Em De Immenso, a sua última obra cosmológica (1591), “Bruno propôs que o sol, que está no centro, não só gira com um movimento espiral em torno do seu próprio eixo, mas que ele também move em torno do centro em uma órbita elíptica com respeito aos polos celestiais…” (Gatti, 1999: 80). Ou seja, Bruno substituiu o movimento elíptico da Terra, proposto por Copérnico, por um pequeno movimento elíptico do Sol em torno de um ponto no centro do Sistema Solar. Pois, ele acreditava que existiam polos celestiais para explicar o fenômeno da precessão da Terra (idem: 80). Também, desprovido de instrumentos, ele imaginava que os planetas Mercúrio e Vênus orbitavam o Sol na mesma órbita da Terra, embora em posições diferentes da órbita (Idem: 82). Estranhamente, em outra passagem próxima, ele afirmou que Vênus é um satélite de Mercúrio, orbitando em torno dele, tal como a Lua em torno da Terra (Idem: 82). Durante a sua análise da obra De Immenso, a fim de exemplificar o quase desprezo total pela cosmologia de Bruno, Hilary Gatti observou que “o esquema da cosmologia final de Bruno, tal como exposta na obra De Immenso, foi aceito apenas por William Gilbert (1544-1603), o qual aceitou apenas a parte relativa à Terra e ao Sol” (idem: 82).

A Geologia Errante

Após Teófilo, interlocutor representante de Giordano Bruno, afirmar que a Terra tem alma e é sensitiva, o interlocutor Prudêncio fez a seguinte observação, de certa maneira cômica: “Parece-me que a terra, sendo animada, não deve sentir prazer quando se fazem grutas e cavernas no seu dorso, tal como quando a nós nos causa dor ou desgosto, quando nos implantam um dente ou quando nos perfuram a carne”. Bruno, em seguida, explicou “que a terra tem sentido, (mas) não o tem semelhante ao nosso, se tem membros, não são estes semelhantes aos nossos, se tem coração, não é igual ao nosso, etc….” (idem, 152-3). Vivendo em uma época na qual ainda não existia a Geologia Científica, Bruno fez uma estranha e confusa comparação entre a Terra e os animais: “Eu creio que, de maneira não distinta a dos animais, quais nós conhecemos por tais, suas partes (da Terra) estão em contínua alteração e movimento, e tem um certo fluxo e refluxo, acolhendo sempre em seu interior alguma coisa de extrínseco e sempre enviando para fora algo de extrínseco: de onde, se crescem as unhas, se nutre os pelos, as peles e os cabelos, se consolidam as peles, se endurecem os couros, assim a terra recebe o fluxo e o refluxo das partes, pelos quais muitos animais, por tais manifestos a nós, nos permitem ver expressamente sua vida. Como é mais que verossímil, sendo que toda coisa participa da vida, muitos e inumeráveis indivíduos não somente vivem em nós, senão que em todos os corpos compostos…” (idem: 153.

Outra explicação estranha: “… posto que da mesma maneira, que o mar não está na superfície, senão nas vísceras da terra, como o fígado, fonte dos humores, está dentro de nós, assim, este ar turbulento não está fora, senão de igual forma que o ar no pulmão dos animais” (idem: 156). Em seguida forneceu uma incompreensível explicação para a pergunta de que se nós vivemos nas vísceras da Terra, como é possível que avistemos o hemisfério inteiro. Depois de uma explicação confusa, que incluiu até um desenho, de como é possível viver nas vísceras da terra e ao mesmo tempo enxergar a superfície, ele concluiu alegando que “não deve ser considerada uma fábula o que disse Platão sobre as grandíssimas concavidades e seios da terra” (idem: 156-9 e Liaño, 2007: 178-9).

Conclusão

Bem, as explicações conjecturais de Bruno sobre o universo, os mundos e a Terra são numerosas, se incluirmos todas aqui, este estudo de tornaria muito extenso, portanto, a coletânea acima poderá ser suficiente para transmitir uma noção ao leitor do tanto da sua cosmologia que não foi confirmada no futuro. Não só o tanto, mas também o alto grau de desacerto de suas especulações fantasiosas. Assim, talvez a coletânea acima poderá ser suficiente para o leitor julgar se ele merece ou não o honroso título de “Profeta do Universo Infinito”.

Que Giordano Bruno foi um escritor confuso, quase todos os estudiosos concordam, exceto, obviamente, os seus admiradores. Para justificar, os esoteristas alegam que estas confusões são apenas aparentes, pois elas são códigos secretos, cuja decifração é feita apenas pelos iniciados (Del Giudice, 2014, passim). Ele tratou de um incontável número de assuntos, com súbito trânsito de um assunto para outro, tão diversificados que a leitura de suas obras se torna confusa. Até os mais dedicados estudiosos reconhecem as dificuldades, veja a observação de Hilary Gatti: “A Cena de le Ceneri (A Ceia da Quarta Feira de Cinzas) não é um livro fácil de ser lido” (Gatti, 1999: 46). Paul Richard Blum também observou que a mudança de linguagens de Bruno dificulta o entendimento de sua obra: “… a mudança de linguagens filosóficas se tornaria uma das marcas da filosofia de Bruno, e é esta mudança que torna mais difícil interpretar os seus escritos” (Blum, 2012: 08). Ernesto Schettino, um dos tradutores de Spaccio de la Bestia Trionfante (Expulsão da Besta Triunfante) para o espanhol, observou em seu prólogo: “Como destacam os críticos de Bruno, existem muitas fantasias especulativas no meio de suas concepções…” (Bruno, 1991: 18). Um crítico rigoroso diria que quase tudo que foi escrito por Bruno é especulação fantasiosa.

A rigor, ele acertou sobre o universo infinito e sobre a existência de outros planetas orbitando outras estrelas, isto é, apenas o que já tinha sido dito por outros autores no passado, mas foi só isso que ele acertou, pois, as extensas explicações conjecturais que ele elaborou para justificar as suas teses, algumas justificativas sobre a infinitude do universo extraídas de Nicolau de Cusa, além de muito confusas e excessivamente teóricas, não foram confirmadas em seguida. Ademais, seu projeto de fundar uma “Nova Filosofia” não prosperou.

Entretanto, não podemos tirar totalmente o mérito de Bruno, apesar da quase totalidade das suas especulações não terem sido confirmadas no futuro, no entanto podemos lhe atribuir mérito, não por suas ideias, mas por sua atitude, isto é, pela sua intransigente defesa pela autonomia da pesquisa e pela liberdade de expressão, cujo preço foi a sua vida. A lição que o martírio de Bruno nos ensinou nos séculos seguintes foi a de que, mesmo se as duas partes estiverem erradas, ou seja, a Igreja com seu irreversível apego aos dogmas e Bruno com suas especulações não confirmadas no futuro, devemos sempre manter a tolerância pela opinião alheia, estar abertos ao diálogo e saber extrair proveito do debate, pois é deste confronto que surgirá uma terceira via que promoverá o progresso das ideias. Isto é, nunca devemos pensar que estamos irreversivelmente certos, para não cedermos. Esta é voz de Giordano Bruno que ecoa até hoje.

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Notas

[1] Para um estudo sobre Bruno no contexto da ciência do Renascimento, a obra indicada é Giordano Bruno and Renaissance Science de Hilary Gatti, 1999.

[2] O termo hagiografia deriva do grego αγιος-ágios (santo) mais grafia (escrita), portanto: escrita sobre um santo, mais frequentemente definida por “biografia de santo ou de santa”; porém, aqui é utilizado no sentido figurado de “biografia excessivamente elogiosa”.

[3] Para conhecer biografias livres do caráter hagiográfico e laudativo, ver: Bruno, 1972: 06-41; León-Jones, 1997: 01-6; Benavent, 2004 e Blum, 2012; também, para atualização e para revisão dos estudos acadêmicos sobre Bruno, consultar: Gatti, 2011.

[4] Ela acreditava e os teósofos sustentam que a teósofa Annie W. Besant (1847-1933) foi Giordano Bruno em uma das suas encarnações anteriores (Theosopedia, verbete Annie W. Besant, na web).

[5] Estas características de Bruno são exibidas no filme de Giuliano Montaldo, através da formidável atuação do ator Gian Maria Volonté.

[6] Letter to Herodotus § 41-2; Bailey, 1926: 23 e Letter to Pychocles § 89; Bailey, 1926: 59.

[7] Estas alegações de Bruno e outras também aparecem nos depoimentos dos seus companheiros de cela (Benavent, 2004: passim).

[8] A obra de Júlia Benavent, Actas del Proceso de Giordano Bruno, é extraída deste Sommario.

[9] As referências ao universo infinito e à infinidade de mundos não aparecem apenas nos escritos de Bruno, mas também nas denúncias de Mocenigo e nos depoimentos dos companheiros de cela, estes últimos relatados a partir de conversas na prisão (Benavent, 2004, passim).

[10] Bruno utilizou sempre, nos seus diálogos, um interlocutor (alter ego) que representava a sua filosofia. No diálogo, De L’infinito, o seu representante (alter ego) é Filoteu, no diálogo, Le Cena de le Ceneri, o seu representante é Teófilo. Um ou mais dos outros interlocutores representava uma ou mais filosofia da qual Bruno pretendia criticar, no caso da obra De L’infinito, a filosofia criticada é o Aristotelismo, representada pelo interlocutor Burquio.

[11] Talvez se referindo aos cometas e às estrelas cadentes.

[12] Uma referência à concepção aristotélica do motor primeiro.

[13] Afirmação estranha, pois, em torno de si mesma, a Terra apenas executa o movimento de rotação. Em outra passagem, ele alegou que o movimento de rotação da Terra é feito no sentido “vai e volta” (Bruno, 1993: 126).

[14] A ideia do éter, uma hipotética substância onipenetrante, muito acreditada pelos especuladores na Antiguidade e na Idade Média, foi provada ser uma fantasia nos séculos seguintes. O conhecimento atual aponta que a matéria mais presente no Universo é a Matéria Escura. Segundo a estimativa da maioria dos físicos, o universo está composto de 4% de Matéria Normal, 23% de Matéria Escura e 73% de Energia Escura.

Um comentário sobre “Giordano Bruno, o Profeta “Errante” do Universo Infinito

  1. Estudo formidável, muito útil para desmitificar as ideias predominantes sobre Giordano Bruno, parabéns pelo artigo.

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